A PROPOSITO DO ATO DE CRIAÇÃO
Se o processo de criação de uma história que escrevo
mostra-se um tanto emperrado, se ao dar continuidade a um diálogo entre
personagens sinto-me bloqueado para fazê-lo, enfim, se desejo criar e me percebo
contido por algum impasse, de imediato, sem muita demora, costuma acontecer o
seguinte:
num lance repentino, algo não menos imprevisto – um
gesto, um som, uma observação de relance, um acontecimento inesperado, algum
movimento diferenciado – me sintoniza com certa fonte de palavras que se tornam
frases expressas em meu imaginário.
Se anoto à mão esse lance de dados, prossigo
escrevendo e assim alcanço o texto desejado com sentido e sonoridade próprios
da linguagem poética.
Vale frisar que não chamo de inspiração isso que
ocorre.
Prefiro entender que se trata de uma libertação... quando,
dessa fonte, o verbo se desata e me comunica algo que é de meu agrado e necessito
para escrever.
Se nesse instante - por carecer de caneta e/ou de
papel - não tenho como registrar o impulso verbal desatado, por costume fico
repetindo na memória o que se desatou até a oportunidade de registrá-lo por
escrito.
Curioso é que, ao transcrever no papel esse trecho
emergente em meu imaginário, logo em seguida esqueço seu conteúdo. Sinto-me,
porém, tranquilo, por ter copiado o lance de dados que se realçou em minha
mente, para usá-lo na história que escrevo ou em alguma outra história que escreverei
no porvir.
(Quando anoto esse despertar do verbo em algum papel
que tenho comigo à mão e logo esqueço o conteúdo do que anotei, assemelho esse
esquecimento ao de um sonho acontecido e registrado logo após o despertar,
registro de sonho que não o impede de em seguida apagar-se na memória do
sonhador, salva a sua trama por ter sido anotada.)
Se não registro no papel o verbo desatado, acontece
o mesmo: também esqueço e não mais me lembro (um tanto contrariado comigo) do
que deveria ter registrado por escrito...
Por não ter anotado esse trecho esquecido, nasce em
mim a impressão culposa de que tal esquecimento acontece quando tais frases,
cansadas da oportunidade que me ofertaram, passam a me considerar um tipo
mal-agradecido que não as registrou no papel.
Imagino que tais frases não mais lembradas por mim se
transferem para algum lugar desconhecido de minha memória.
Sei que raramente as recupero desse esconderijo. (Se
isso acontece, sinto certo desagrado, pois o recuperado me parece ter sabor
inferior ao da felicidade que antes me transmitira a matriz do agora redescoberto.)
Vale considerar igualmente que há uma clara
cumplicidade entre o desatar de palavras em meu imaginário e a mão que
manuscreve o verbo libertado. De fato escrever à mão me vale muito por essa sua
sensível peculiaridade.
Ao longo da vida trago comigo múltiplos exemplos manuscritos
de ocorrências do tipo. Registros de palavras e frases repentinas e emergentes
que tantas vezes se transferiram para contos, romances e poemas de minha
autoria... ou, quando não, ainda permanecem guardados em gavetas e/ou
cadernetas de anotações. Um dia no porvir – quem sabe – tais registros irão
para seus devidos lugares, nalgum texto mais desenvolvido – em prosa ou poesia
– que me couber escrever.
Creio que esse é um processo comum no andamento da
criação artística, não sendo propriamente uma peculiaridade exclusiva dos
escritores. Estou seguro de que, a seu modo, isso acontece com todos os demais
criadores de arte.
Os esboços de desenhos ou os registros de um pequeno
acorde musical que surgem repentinamente na imaginação de seus artistas são
exemplos disso. Estou ciente de que na interpretação teatral e na dança se dá
algo similar.
Creio que tais expressões surpreendentes do ato de
criar ocorrem igualmente, com vigorosa e especial constância, nos chamados
desafios de improvisos entre músicos e poetas repentistas, ao desatarem e
exporem suas aceleradas criações impressionando vivamente quem os ouve.
Em síntese, tal situação me faz crer que criar, no
âmbito da criação artística, é deveras um ato, um gesto, uma expressão de
liberdade – no caso do escritor, a liberdade da palavra que se desata - com
seguro sabor de felicidade para o criador e para os interlocutores com quem
esse criador se comunica.
Sabor controverso, pois o prazer de sua surpresa –
de seu gostoso feitio de liberdade e felicidade – é algo que não menos confirma
a dificuldade de ser livre e feliz no mundo Histórico em que existimos.
Trata-se de uma trama de dificuldades que merece ser
sempre esclarecida, sendo trama que resulta das dolorosas contradições presentes
na História social.
Por conta disso, a melhor arte – sua criação e
comunicação – é sempre cúmplice do sentimento e do gesto crítico, ou seja, de
um deslocamento que contribua para a transformação da mentalidade social na
História conflitante: deslocamento da linguagem instituída, deslocamento
surpreendente que favoreça efetivas transformações no andamento de uma História
adversa à liberdade e à felicidade na vida social.
De certo há muito o que fazer, ao promovermos,
através do processo de criação artística, tais deslocamentos a favor da
liberdade e da felicidade, sem esmorecermos, sem nos entregarmos à bocarra
envenenada dos perversos dentes dessa sedutora dentadura da História ainda hoje
existente.
Com fraterna
estima,
J. A.
2 comentários
Oi, estou chegando.
ResponderExcluirGostei do seu blog.
Um bjo
Que blog delicioso. Um escritor descrevendo o indescritível: o seu processo de escrita, sua relação com as palavras, a magia de seus personagens. Vida longa ao blog, do qual já me tornei fiel leitor. Grande abraço, Reinaldo
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