O CORVO E A PROSA
Escrever Literatura é uma bênção e uma generosidade
para o escritor e o leitor. Conecta um e outro a múltiplas extensões de
possibilidades do conhecimento e da vivência, nutre a arte de viver.
Na Poesia, na Prosa ou no Drama há sempre uma
prefiguração de justas grandezas, antenados desejos a favor de um aprimoramento
na trajetória da Humanidade...
...o que ocorre em obras magnas expressivas de um
povo ou de uma civilização e também acontece a seu modo nas mais simples obras
literárias.
Todas instauram, mobilizam e clarificam saberes,
direitos, gostos e sentimentos para a satisfação de seus autores e daqueles a
quem alcançam...
...seja com a intensidade emblemática dos poemas
homéricos, dos textos das tragédias gregas ou dos grandes romances e contos
modelares, seja com a simplicidade presente numa trova, num drama de ocasião ou
numa singela narrativa, em obras da criação popular ou de escritores mais
modestos.
Se esse é o sentido da Literatura, não menos é a
razão de ser do Desenho, Pintura, Gravura, Escultura, Arquitetura e Fotografia,
Música, Dança e Representações Cênicas, tanto quanto das práticas artísticas
emergentes com as avançadas ferramentas criativas da contemporaneidade.
Não por mera coincidência é através das Artes que os
Deuses da Humanidade, nas diversas culturas – desde os seus livros sagrados –
expressam suas mensagens, comunicam seus mandamentos, parábolas e provérbios
exemplares, percursos para o bem estar das criaturas.
Escrever ou ler uma poesia, um drama, conto ou
romance espelham esse abençoado processo de comunicação...
...o que também ocorre na vivência das demais Artes.
Creio que assim sempre acontece...
...fiel à certeza de que mais felizes são os que se
associam e se entregam ao costume de visitar e habitar a Cidade da Criação.
É crença que fez de mim quem sou.
Devido a contingências de minha história pessoal,
dados de minha origem e meio familiar, formação escolar e não menos por algumas
situações do acaso, desde criança (...muito falante, curioso ouvinte de canções
e histórias ou às voltas com a leitura de poemas e narrativas) desejei ser
escritor...
...um escritor que não teme confessar sua
preferência por ser leitor.
De início quis ser Poeta, talvez por entender que a
Poesia é a mais sublime criação literária... talvez seja.
Escrevia versos – ainda os escrevo – sem devidamente
saber o que era Poesia, certamente algo mais do que meramente compor estrofes,
rimar palavras, reunir com belo ritmo algumas imagens
verbalizadas de modo um tanto original.
A bem da verdade a Poesia ainda era para mim tal
qual a Senhora Dona Sancha da tradicional canção folclórica:
“Senhora Dona
Sancha,
Coberta de
ouro e prata,
Descubra o seu
rosto,
Queremos ver
sua cara!”
Adolescente busquei com mais constância a prosa de
ficção, grato a um ocasional encontro com Edgar Allan Poe.
Foi assim:
perto de completar dezesseis anos escrevi pequeno
poema que me desencadeou curiosas interrogações a propósito de seu significado.
Eram versos escritos sem maiores pretensões numa
tarde quente de novembro.
Texto de desejado feitio poético que promoveu marcante
mudança em meu jovem propósito de ser escritor.
Versos que diziam o seguinte:
Nossas
mulheres ficaram
Todas azuis de
repente.
Eu comecei a
pintá-las
Com um branco
tão contente
Que Zulmira
ficou louca
Por minhas
mulheres brancas.
Zulmira saiu
gritando
Correndo por
nunca mais:
- Meu deus,
pinte todas branco!
Eu era o deus
de Zulmira
A virgem nua
sem corpo
A virgem nunca
mulher:
- Meu deus,
pinte todas branco!
Pintei-me todo
de negro
Com a cor das
noites
De amor.
De início achei divertido...
...mesmo sem entender o que pretendia dizer.
O fato mais intrigante é que não conhecia qualquer
Zulmira na cidade...
...salvo uma senhora gordíssima, dona de pronunciado
ventre, velhota presente em minhas lembranças de infância, que entretanto
morrera muitos anos antes de escrever o dito poema.
Devido a seu ventre avantajado certa vez papai,
brincando, segredou-me que se tratava de uma grávida eterna, pois ela levava
para sempre, guardada na barriga, uma criança a que negava dar à luz.
Até achei graça da maldosa história, mas não
acreditei.
Contei a meus colegas. Uns acreditaram. Outros, não.
Intrigado com o poema decerto não encontrei qualquer
relação entre a Zulmira dos versos e a tal senhora há tempos falecida.
(Até pode haver, quem sabe?
Nada é mais misterioso do que as associações do
imaginário.)
Tomado pelo enigma de seu significado, mostrei o
poema a papai que, em meio a ligeiro sorriso, reagiu de maneira positiva.
Gostara do poema.
Logo retruquei:
- Também gostei. É divertido. Só não sei o que quero
dizer com isso - confessei.
Sua resposta não elucidou meu enigma:
- O segredo está nas cores... e, se há Poesia nesses
versos, esta reside na estrofe final.
- Nas cores, como? – inquiri, curioso...
...o que de nada adiantou:
- Descubra você. Afinal o poema é seu. Há de saber –
sonegou sua interpretação.
Influenciado pela sugestão, vi no azul a cor do amor.
No branco, a cor da pureza e da castidade, algo
assim.
E no negro – “cor das noites de amor” – uma imagem
feliz do prazer presente no congraçamento afetivo.
De todo modo era uma interpretação subjetiva.
(O que aliás é próprio de qualquer interpretação)
O azul poderia também significar uma das cores
primárias.
O branco, a reunião de todas as cores...
...e o negro, uma ausência de cor, ainda que “cor
das noites de amor” nos versos.
Outras sugestões não seriam menos plausíveis.
Sem bem entender a insinuação, dias depois mostrei
os mesmos versos à nossa professora de Latim no Ginásio, Dona Ena Calmon,
sempre econômica em suas opiniões, mas considerada pessoa de grande cultura, vasto
conhecimento das Letras Clássicas.
A mestra leu e releu o que eu escrevera.
Após alguns instantes de suspense, sentenciou:
- Parece inspirado em Edgar Allan Poe. Em “O
Corvo”, o melhor poema de Poe. O “nunca mais” na terceira estrofe é
uma evidência disso – e nada mais acrescentou ao devolver a folha datilografada
com os versos.
Surpreso, agradeci o comentário que acentuara as
minhas dúvidas.
Não fazia a menor idéia de quem era Edgar Allan Poe.
Muito menos conhecia seu poema “O Corvo”,
sendo incapaz de imaginar o que esse Corvo tinha a ver com o “nunca
mais” de meus versos.
Claro que não revelei minha ignorância.
Optei por levar o constrangimento de minhas interrogações
para casa.
Discretamente na hora do almoço perguntei a papai se
conhecia o escritor Edgar Allan Poe e o que lera do poeta.
- Sim! Alguns contos e alguns poemas! Por que? –
quis saber de mim.
- “O Corvo”, leu?
- Sim! Porém, bem melhor do que “O Corvo” é o
conto “O Escaravelho de Ouro”, do mesmo autor. Não temos em casa qualquer
livro de Poe, mas logo arranjo algum para você ler. Vai gostar – anunciou e cumpriu
a promessa.
Mais à noite, numa antologia do escritor, que papai pegara
emprestado com um cunhado advogado dono de bela biblioteca, li o conto “O
Escaravelho de Ouro”.
(Era um livro luxuoso encadernado em couro, com
inscrições em linhas douradas na capa e na lombada, obra de coleção denominada
“Grandes Mestres da Literatura”, algo pomposo do tipo.
Cada um de seus volumes trazia – sem referenciar os respectivos
tradutores - contos e poemas de algum dos mais importantes escritores do
Ocidente, com ilustrações e respectiva biografia.
Já conhecia essa coleção desde que papai, dramatizando
conforme seu gosto, lera para nós, reunidos em casa, o conto “Noites Brancas”,
na antologia de Fiódor Dostoievski, quando arrancou lágrimas de tia Josefina
Arrabal que nos visitava na oportunidade.)
Gostei imensamente de “O Escaravelho de Ouro”.
Jamais lera uma história tão bem articulada por suas
deduções, sendo narrativa enigmática, mágica e misteriosa, o que me agarrou por
todo o tempo da leitura.
Também li “O Corvo”, no mesmo livro da
coleção de tio Jorge Acha. Gostei menos.
Na ocasião achei o poema mórbido e fúnebre, com
noite bem diversa da noite de meus versos.
Considerei pesado, danado de triste, o seu fatalista
“nunca mais”.
Afinal o que um adolescente pleno de felizes ilusões
com a Literatura pode encontrar em “O Corvo”?
Preferi os gritos de minha Zulmira enlouquecida correndo
atrás da felicidade.
Hoje gosto mais de “O Corvo”...
...e confesso que prefiro o poema na tradução de Fernando
Pessoa, lida por mim quando universitário na Faculdade de Letras.
Poe que me perdoe. É fato raro, eu sei, mas tem vez
que a tradução é bem melhor do que o original. Que fazer?
(Embora seja inviável qualquer tradução mais
adequada para o “nevermore” - o “nunca mais” em inglês reproduzindo
numa oportuníssima onomatopéia o grasnar do pássaro.)
“..........................................................................
E o corvo, na
noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto
de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem
a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz
lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma
dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se á...
Nunca mais!”
(Fernando
Pessoa)
Picado pelo Escaravelho de Ouro, passei boa
parte da semana lendo outras narrativas do escritor na dita antologia: “A
Carta Roubada”, “A Queda da Casa de Usher”, “Os Crimes da Rua
Morgue”. Outros mais...
...e desde então vivi algum tempo impressionado ao me
ver diante de espelhos, devido à leitura do conto “William Wilson”, de
Poe.
Seus poemas não me interessaram tanto.
Inteirei-me da vida do escritor...
... e quis mais... era pequena aquela antologia para
mim.
Garoto insistente e teimoso pesquisei e descobri que
a Editora Globo, de Porto Alegre, havia publicado as obras completas de Edgar
Allan Poe traduzidas por Oscar Mendes e Milton Amado.
(Vale registrar que muito me inspirei nesse
adolescente irrequieto para criar o personagem Filipe Esperança, jovem “autor”
e narrador de meu romance “A Sociedade de Todos os Povos”, editado em 2010
pela Manole/SP. Feliz inspiração.)
Encomendei o livro por reembolso postal.
Sem maior demora a encomenda chegou às minhas mãos
em dezembro, perto do Natal.
Trazia uma inteligente introdução de Charles Baudelaire,
outro Poeta que até então me era desconhecido.
Boa novidade para mim.
Passei as férias de verão às voltas com Edgar Allan
Poe.
De tudo o que li no volume da Globo gaúcha, o que
mais me impressionou foi o texto “A Filosofia da Composição”, onde Poe
detalha os passos da construção retórica de seu poema “O Corvo”, para
mim oportuna descoberta do que é realmente escrever Poesia, algo bem diverso,
mais intenso e mais difícil do que escrever versos.
Com o texto, a Poesia enfim mostrou sua cara.
Deixou de ser a Senhora Dona Sancha da canção
folclórica:
“Senhora Dona
Sancha,
Coberta de
ouro e prata,
Descubra o seu
rosto,
Queremos ver
sua cara!”
Ser Poeta tornou-se algo complexo, extremamente
exigente, distante de minhas possibilidades e competências.Creio que devido a isso tendi a me satisfazer com
escrever prosa de ficção, contar histórias conforme já era meu hábito – talvez maior
vocação - na convivência social.
Às vezes escrevo versos, o que quase sempre
transfiro à “autoria” de algum personagem de minhas narrativas.
Estão em muitos de meus contos.
Poesia, para bem dizer, creio que nunca escrevi.
Trago sempre comigo a dúvida da Poesia, graças às
justas exigências de “A Filosofia da Composição”.
(Se algum de meus versos ronda a situação de ser Poesia,
imediatamente entrego o desafio à “autoria” e à responsabilidade do
personagem Ludovico Serenari, um dos oito “escritores” de meu
livro – uma espécie de “romance coletivo”
- ainda inédito e intitulado “O Infinito de Pé”, obra em progresso há
alguns anos, que pretendo terminar de escrever neste 2016...
...espero que sim.)
Hoje estou convencido de que “A Filosofia da
Composição”, de Edgar Allan Poe, a bem da verdade é outro texto em prosa de
ficção escrito por seu autor.
Iluminada narrativa com lógica devidamente articulada
a favor do propósito de expor e valorizar a construção poética em “O Corvo”.
Apesar de seu pretendido feitio ensaístico, tem estrutura
dedutiva bastante similar à do conto “O Escaravelho de Ouro”.
O que pouco importa e mal não faz por ser assim...
...muito pelo contrário.
O importante é que sugere com precisão o que é Poesia
conforme suas exigentes complexidades retóricas, sendo essa filosofia de
Poe valiosa lição para Poetas e leitores.
Com fraterno abraço,
José Arrabal
4 comentários
Caminhar no universo das letras com José Arrabal é sempre encantador.
ResponderExcluirLer José Arrabal é ouvi-lo, é se encantar com sua narrativa sem fim.
ResponderExcluirPrezado Arrabal,
ResponderExcluirnão o conheço pessoalmente, mas tive a oportunidade de conhecer seu blog por intermédio de um amigo comum: o Luiz.
Gostei da história por detrás da meta-análise de seu processo de criação. Acredito que uma das muitas a construir a sua morada de escritor. E para ser sincero, gostei mais da história do que os motivos.
Quase sempre o que nos impulsiona, aquele insight motivador de questões, às vezes perseguidas de modo infrutífero vida afora, é obscuro, regido ao acaso, sei lá...
Mas de qualquer forma, a sua lembrança-história-estória, delicadamente embalada pelos sons, cheiros e cores do afeto, me sugerem um mundo particular, que se dá a conhecer como existência somente por meio de sua narrativa, deixando um convite, uma espécie de saudade e curiosidade no ar.
Olá!
ResponderExcluirNos conhecemos em uma exposição no Itau Cultural segunda feira, quando estava junto de sua amiga fotógrafa.
Parabéns pelo ótimo trabalho, e segue o link onde publico minhas ilustrações, caso haja interesse :)
Obrigado,
Daniel
Instagram.com/dan.amaralll