HISTÓRIAS DE LEITORES
Guardo sempre comigo histórias
vividas com leitores, registradas em meus diários, fixadas na memória. São
manifestações subjetivas que fornecem aprimorados deslocamentos e acréscimos à
compreensão de minhas atividades literárias.
Toda narrativa é uma carta
a quem lê. Expõe percursos, concede horizontes. Contos, novelas, romances e
crônicas reúnem vivências através de suas tramas, intrigas, cenários e trajetórias
das personagens. Aguardam a correspondência de seus leitores...
...e que estes também
escrevam as suas histórias, seus diários, registros de suas leituras, sonhos,
desejos, acontecimentos e lembranças. Escritores e leitores pertencem à mesma
família na cidade das palavras onde procuram e encontram as mais diversas e
devidas experiências existenciais.
Gosto mais de ler do
que escrever, ciente de que sou melhor leitor do que escritor. Afinal de contas
na história da Humanidade é infinito o número de mestres escritores com maiores
habilidades do que eu, embora não consiga parar de escrever para apenas me
dedicar a ler.
São duas práticas
cotidianas de meu jeito de ser.
Leio e escrevo todos
os dias e dia perdido é aquele em que nada li e nada escrevi...
...porém, dia mais
feliz é aquele em que converso com quem leu histórias escritas por mim.
Todo leitor atento de
uma narrativa é co-autor do que lê. Costuma surpreender o escritor. Alcança
novas expectativas, acrescenta dados inesperados aos enredos, descobre inusitados
desfechos para as obras, tantas vezes até enxerga o que o autor não percebe.
A melhor leitura de
uma narrativa – mais do que um entretenimento ou coleta de informações – é um
ato de criação capaz de construir caminhos originais no encontro com o
andamento da história. É uma prática da liberdade para o leitor, tal qual
escrever acontece com o escritor.
Leitor e escritor são
substantivos que rimam.
Densa aliança que
impulsiona e ilumina o porvir.
Sempre aprendo com
leitores por suas cumplicidades, afetos ou contradições, pontos de vista,
identidades ou diferenças, com o que sugerem e reivindicam.
Constroem o escritor
que sou, tanto quanto outros escritores lidos por mim me aprimoram a vida através
do diálogo com suas obras plenas de marcas e anotações nas margens de suas
páginas ou em páginas de meus diários.
A CARA DE DENTRO
Lembro bem e jamais
hei de esquecer. Há muitos anos, ao terminar de escrever “A Lenda do Cistral
Encantado”...
(Um de meus contos
mais felizes, longa trama com elfos, ondinas, duendes, ciganos, corsários, uma
catedral submersa numa lagoa, um jardim com a flor da tranqüilidade, mais um
grande cisne de cristal – certo Cistral - impedido de voar por ser vítima da
maldição de um bruxo, história com encantamentos assim...)
...pedi a meu filho, então com onze anos de idade, que lesse o texto.
Leitor constante de boas
obras de outros autores nacionais e estrangeiros, após atenciosa leitura, seu
comentário tornou-se uma espécie de emblema, bússola para mim:
- Essa história,
pai, é a sua cara! Não a cara de fora, mas a cara de dentro, a que você guarda
e às vezes mostra naquilo que escreve – foi o que ouvi dele.
Desde aí, se escrevo
um conto, crônica ou romance, mesmo uma postagem para este blog, após terminar
de escrever e ao reler pulsa em mim a mesma pergunta essencial:
- Será que isso
também é a minha “cara de dentro”?
Quando confirmo,
agrada-me a história escrita, se não, retorno ao trabalho com o texto numa
incansável procura.
Noutra oportunidade,
ao publicar o livro “Histórias do Japão”, editado pela Peirópolis/SP,
passei um exemplar de presente a um amigo neto de japoneses.
Tempos depois
contou-me que lera em voz alta cada conto da obra, noite após noite, para seu
idoso avô hospitalizado em recuperação de uma cirurgia.
- E o que disse
seu avô? Ele gostou? – quis saber, curioso.
A resposta foi uma
preciosa dádiva:
- Falou que seu
livro não é coisa de brasileiro, não. Está convencido de que você é algum outro
japonês com pseudônimo de gaijin do Brasil. “Só japonês escreve assim,
brasileiro escreve de outro jeito”, vovô teimou comigo e não houve modo de
convencê-lo do contrário – acentuou, concedendo maior legitimidade a meu “Histórias
do Japão”.
Diante de tamanho
contentamento pedi ao amigo que não desmentisse o avô. Confirmasse para ele que
de fato eu nascera no Japão, precisamente em Kamakura, cidade dos mil
santuários xintoístas e templos budistas, tendo emigrado ainda jovem para o
Brasil.
Melhor assim.
A INESPERADA PRESENÇA
DO HUMOR
Certa ocasião escrevi
dois grandes poemas irmanados, cada um com trinta e duas páginas – chamados “Vivadiagem”
e “Estilhaços do Passageiro Embarcado” -, versos narrativos um tanto
perversos versando a respeito das dolorosas relações e confrontos de um pai e
um filho, este às voltas com a difícil construção libertária de sua jovem
identidade.
(Poemas até hoje
inéditos, atualmente entregues à autoria de Ludovico Serenari, personagem e
poeta - espécie de heterônimo - de meu romance em progresso “O Infinito de Pé”,
que mais me parece sem fim e a cada ano prometo terminar, embora em vão. Um dia
chego lá. Quem sabe?)
Preocupado com as
dolorosas e violentas perversidades expostas no que escrevera, disposto a testar
os dois poemas, procurei a opinião de um leitor.
Na época professor da
PUC/SP, ao chegar à universidade com os textos em mãos, cuidei de passá-los a
um aluno amigo, moço culto, leitor voraz e vibrante com suas radicais convicções
marxistas de militante político.
Ousei e pedi a ele
que lesse os dois poemas.
Imediatamente pegou meus
versos.
Sentou um tanto
distante de mim.
Pôs-se a ler.
Na hora senti-me tomado
pelo temor de ter entregue tais poemas tão perversos justamente a quem vivia
seu dia-a-dia mais comprometido com moralidades próprias da militância
político-partidária.
Qual o quê? Mero
preconceito meu. Talvez o moralista fosse eu. Surpreso, reparei que, no
encaminhamento de sua leitura, a cada página o jovem ria um bocado do que lia
e, de modo crescente, riu até findar sua atenta leitura.
Após bom tempo trouxe
comentário surpreendente:
- Muito bom.
Gostei dos dois poemas. Ambos se completam. São fortes e divertidos, com
ironias corajosas, demolidoras da doentia guerra de poder e competição no seio
da família burguesa, essa comilança dos diabos que existe por aí. Tem de
publicar esses poemas! - afirmou convincente.
Em seguida teceu sugestões
para trechos de um ou outro verso, alguma troca de palavras, o que me foi bem útil.
Agradeci em paz e
mais à vontade com o que escrevera.
Abençoado,
inteligente, inesquecível leitor.
ESTA É A SUA VIDA
Já a biografia de Josef
Stalin, editada em 1986 pela Moderna/SP, escrita em parceria com o compadre e também
professor, José Carlos Estevão, nas mãos dos leitores nos trouxe resultados
igualmente inesperados.
Livro pronto, resolvi
testá-lo. Passei exemplares da obra a três amigos de distinta opinião política:
a um velho stalinista convicto de suas crenças marxistas, a um jovem militante
trotskista da Convergência Socialista e a um engenheiro mais interessado em
questões técnicas e científicas.
Para minha surpresa os
três manifestaram sincera afeição pelo livro que leram com bom proveito e
prazer, talvez devido à postura emocional do texto, no caso mais narrativo do
que dissertativo.
Também muito nos
surpreendeu o lançamento da obra na Faculdade Metodista de Jornalismo, em São
Bernardo do Campo, onde, na época, eu e José Carlos Estêvão lecionávamos.
Foi um evento
concorrido, com animado debate público, presenças de políticos, professores,
multidão de estudantes, mais a cereja do bolo...
...uma encenação
teatral dos alunos às voltas com a história do biografado. Para nossa surpresa,
uma hilária sátira com Stalin desmistificado protagonizando contraditório e não
menos tragicômico personagem em divertida paródia do programa de televisão “Esta
é a Sua Vida”.
Saudável bom humor político
a favor de um Socialismo sem tirania, mais a nossa grata satisfação com a obra
multiplicada nos sentimentos de seus leitores.
ANTENAS SINTONIZADAS
No mesmo ano lancei,
na Bienal de São Paulo, um pequeno livro para crianças intitulado “Arai Pele
de Tigre”, história fantasiosa e aventureira de um menino filho do encontro
amoroso de uma deusa e um tigre. Dei o nome de Arai a esse garoto,
justamente o nome da mãe d’água Iara escrito ao contrário.
Pois bem...
...circulando na
Bienal fui abordado por uma senhora que me trouxe o livrinho para autografar.
Seria um presente para o filho dela, também chamado Arai.
Curioso, perguntei de
onde ela tirara o nome do menino.
- É que me chamo
Iara. Quando ele nasceu, coloquei nele o meu nome escrito ao contrário. Arai!
Inesquecível
coincidência.
Escritor e leitor não
são apenas substantivos que rimam.
Tantas vezes têm as
suas antenas sintonizadas.
AS CORES DE BOVARY
Os editores,
responsáveis pela avaliação, seleção e publicação de livros, quando leitores
atentos igualmente fornecem sugestões valiosas aos escritores.
Sou grato a muitos
deles.
Em dada oportunidade,
ao escrever “O Curumim Dourado”...
(Narrativa de
encantamento para crianças herdada da mitologia indígena, aventura de um
abençoado curumin filho de Rudá, o deus do amor.) ...passei os originais da
história a Ione Nassar - então editora sênior da FTD/SP - para que avaliasse a
obra, estando interessado em publicá-la.
Sua leitura foi
especialmente valiosa.
Em nossa conversa por
telefone, Ione mostrou-se encantada com o livro.
Fez, porém, justa
ressalva:
- Você movimenta as
passagens da trama acompanhando as fases da Lua... – observou.
- Exato! Fiz de
propósito e parece que ficou legal! – acentuei.
- Sem dúvida ficou
bonito, mas você comete um ato falho que necessita conserto. Esqueceu a fase da
Lua Cheia – generosa e competente, Ione completou.
Rimos da estranha
imprecisão narrativa.
Em casa cuidei de
reescrever todo o texto, desta vez com a Lua Cheia devidamente presente, decerto
agradecido à atenta leitura de Ione Nassar.
Nada demais. Atos
falhos de escritores não são novidades.
Alguns são preciosos
e encantam os leitores.
Consta que Gustave Flaubert
inadvertidamente, em seu romance maior, às vezes troca a cor dos olhos – ora
verdes, ora negros - de Madame Bovary, belo ato falho que me parece bastante
apropriado às angustiadas ansiedades e dúvidas da emblemática personagem.
(Graça que acontece
na obra, salvo se algum sisudo editor ou tradutor, nalguma reedição do livro, não
“consertou falha” feliz do genial escritor.)
SALVO POR SEBASTIÃO
Aos 21 anos vivi curto
lance de amor com bela senhora muito mais velha do que eu; nada demais, se não
fossem as dores que nos ficaram tatuadas na travessia dessa história desfeliz.
Que fazer? Encerrado
o namoro, sem mais, peguei o limão e tentei uma limonada. Resolvi transformar o
vivido numa narrativa em tom de vingança.
No texto não usei nossos
nomes próprios, mas acentuei com cores fortes as maldades que nos fizemos,
violências de minhas imaturidades e dos obsessivos ciúmes dela.
Fui cruel e
preconceituoso nesse pretenso conto desde o seu título – “Rugas & Rusgas”.
(Homem é assim, ferido vira fera.)
Findado o desabafo,
guardei a tagarelice raivosa.
Tempos depois, os
editores de “José”, excelente revista carioca de Literatura, me solicitaram
algo para publicar.
(Vale ressalvar e
explicar. O nome da revista evidente que nada tem a ver comigo. É justa
homenagem ao poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade.)
Animado pelo convite,
tirei da gaveta o irado “Rugas & Rusgas”. Que fosse para as páginas
de “José”.
Salvou-me a leitura do
saudoso amigo Sebastião Uchoa Leite, poeta maior, ensaísta perspicaz e brilhante
tradutor.
(Autor da melhor e
mais inteligente tradução em Português das “Aventuras de Alice no País das
Maravilhas e Através do Espelho”, também de primorosa e premiada tradução dos
poemas de François Villon, trabalhos elogiados em todas as ocasiões por competentes
especialistas e demais leitores de bom gosto.)
Chamou-me Sebastião
para uma conversa.
Tinha em suas mãos
meu pretendido conto.
Excelente leitor,
devolveu-me “Rugas e Rusgas”.
Ele desconhecia a
história de desamor que inspirara a trama do texto. Foi, contudo, objetivo e direto
em seu comentário, sem alterar sua voz sempre cordial:
- Não publica isso.
Está até bem escrito, mas é só uma montoeira de amarguras e ressentimentos. Não
merece ser chamado de conto. Enfeia você e a Literatura.
Grato à lição do
amigo generoso e sábio leitor, engavetei de vez o texto. Não rasguei, também
nunca mais li, acho até que perdi na mudança para São Paulo.
Deixa lá.
Jornalista e
colunista de teatro, na ocasião publiquei em “José” um pequeno estudo a propósito
de certa obra dramática da escritora Consuelo de Castro. Trabalho bem recebido
pela revista.
Escritor vivo atento às
histórias dos leitores.
Não são apenas
estas...
Fraterno abraço,
José Arrabal
(Visite em Narrativas a nova página do blog)
1 comentários
Arrabal,
ResponderExcluircomo você bem disse, em algum momento do texto, não exatamente com essas palavras, mas a unidade, a cumplicidade transcendente entre leitor e escritor é exatamente a narrativa.
O ser humano é constituído pela narrativa. Mirando e especulando sobre o alvorecer de nosso passado como espécie, foi a capacidade de estabelecer trocas simbólicas a partir do narrar, em toda a sua complexidade involucrada pelo signo linguístico alfabético, sonoro e representativo de sentido de mundo, que nos conferiu nesse lapso de tempo da história natural vantagem competitiva entre outros bichos.
No início era o verbo e o verbo se fez carne e continua sendo entre todos nós, escritores ou não, a argila que molda e liga desde sempre a essência do coexistir.
Abraços e obrigado por compartilhar essas histórias e estórias.