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O CORVO E A PROSA

segunda-feira, agosto 01, 2016 José Arrabal 4 Comments Category :



Escrever Literatura é uma bênção e uma generosidade para o escritor e o leitor. Conecta um e outro a múltiplas extensões de possibilidades do conhecimento e da vivência, nutre a arte de viver.

Na Poesia, na Prosa ou no Drama há sempre uma prefiguração de justas grandezas, antenados desejos a favor de um aprimoramento na trajetória da Humanidade...
...o que ocorre em obras magnas expressivas de um povo ou de uma civilização e também acontece a seu modo nas mais simples obras literárias.

Todas instauram, mobilizam e clarificam saberes, direitos, gostos e sentimentos para a satisfação de seus autores e daqueles a quem alcançam...
...seja com a intensidade emblemática dos poemas homéricos, dos textos das tragédias gregas ou dos grandes romances e contos modelares, seja com a simplicidade presente numa trova, num drama de ocasião ou numa singela narrativa, em obras da criação popular ou de escritores mais modestos.

Se esse é o sentido da Literatura, não menos é a razão de ser do Desenho, Pintura, Gravura, Escultura, Arquitetura e Fotografia, Música, Dança e Representações Cênicas, tanto quanto das práticas artísticas emergentes com as avançadas ferramentas criativas da contemporaneidade.

Não por mera coincidência é através das Artes que os Deuses da Humanidade, nas diversas culturas – desde os seus livros sagrados – expressam suas mensagens, comunicam seus mandamentos, parábolas e provérbios exemplares, percursos para o bem estar das criaturas.

Escrever ou ler uma poesia, um drama, conto ou romance espelham esse abençoado processo de comunicação...
...o que também ocorre na vivência das demais Artes.

Creio que assim sempre acontece...
...fiel à certeza de que mais felizes são os que se associam e se entregam ao costume de visitar e habitar a Cidade da Criação.

É crença que fez de mim quem sou.
Devido a contingências de minha história pessoal, dados de minha origem e meio familiar, formação escolar e não menos por algumas situações do acaso, desde criança (...muito falante, curioso ouvinte de canções e histórias ou às voltas com a leitura de poemas e narrativas) desejei ser escritor...
...um escritor que não teme confessar sua preferência por ser leitor.

De início quis ser Poeta, talvez por entender que a Poesia é a mais sublime criação literária... talvez seja.

Escrevia versos – ainda os escrevo – sem devidamente saber o que era Poesia, certamente algo mais do que meramente compor estrofes, rimar palavras, reunir com belo ritmo algumas imagens verbalizadas de modo um tanto original.

A bem da verdade a Poesia ainda era para mim tal qual a Senhora Dona Sancha da tradicional canção folclórica:

“Senhora Dona Sancha,
Coberta de ouro e prata,
Descubra o seu rosto,
Queremos ver sua cara!”

Adolescente busquei com mais constância a prosa de ficção, grato a um ocasional encontro com Edgar Allan Poe.

Foi assim:
perto de completar dezesseis anos escrevi pequeno poema que me desencadeou curiosas interrogações a propósito de seu significado.

Eram versos escritos sem maiores pretensões numa tarde quente de novembro.
Texto de desejado feitio poético que promoveu marcante mudança em meu jovem propósito de ser escritor.
Versos que diziam o seguinte:

Nossas mulheres ficaram
Todas azuis de repente.

Eu comecei a pintá-las
Com um branco tão contente
Que Zulmira ficou louca
Por minhas mulheres brancas.

Zulmira saiu gritando
Correndo por nunca mais:
- Meu deus, pinte todas branco!

Eu era o deus de Zulmira
A virgem nua sem corpo
A virgem nunca mulher:
- Meu deus, pinte todas branco!

Pintei-me todo de negro
Com a cor das noites
De amor.

De início achei divertido...
...mesmo sem entender o que pretendia dizer.
O fato mais intrigante é que não conhecia qualquer Zulmira na cidade...
...salvo uma senhora gordíssima, dona de pronunciado ventre, velhota presente em minhas lembranças de infância, que entretanto morrera muitos anos antes de escrever o dito poema.

Devido a seu ventre avantajado certa vez papai, brincando, segredou-me que se tratava de uma grávida eterna, pois ela levava para sempre, guardada na barriga, uma criança a que negava dar à luz.
Até achei graça da maldosa história, mas não acreditei.
Contei a meus colegas. Uns acreditaram. Outros, não.

Intrigado com o poema decerto não encontrei qualquer relação entre a Zulmira dos versos e a tal senhora há tempos falecida.
(Até pode haver, quem sabe?
Nada é mais misterioso do que as associações do imaginário.)

Tomado pelo enigma de seu significado, mostrei o poema a papai que, em meio a ligeiro sorriso, reagiu de maneira positiva.
Gostara do poema.

Logo retruquei:
- Também gostei. É divertido. Só não sei o que quero dizer com isso - confessei.

Sua resposta não elucidou meu enigma:
- O segredo está nas cores... e, se há Poesia nesses versos, esta reside na estrofe final.
- Nas cores, como? – inquiri, curioso...
...o que de nada adiantou:
- Descubra você. Afinal o poema é seu. Há de saber – sonegou sua interpretação.

Influenciado pela sugestão, vi no azul a cor do amor.
No branco, a cor da pureza e da castidade, algo assim.
E no negro – “cor das noites de amor” – uma imagem feliz do prazer presente no congraçamento afetivo.

De todo modo era uma interpretação subjetiva.
(O que aliás é próprio de qualquer interpretação)
O azul poderia também significar uma das cores primárias.
O branco, a reunião de todas as cores...
...e o negro, uma ausência de cor, ainda que “cor das noites de amor” nos versos. 
Outras sugestões não seriam menos plausíveis.

Sem bem entender a insinuação, dias depois mostrei os mesmos versos à nossa professora de Latim no Ginásio, Dona Ena Calmon, sempre econômica em suas opiniões, mas considerada pessoa de grande cultura, vasto conhecimento das Letras Clássicas.

A mestra leu e releu o que eu escrevera.
Após alguns instantes de suspense, sentenciou:
- Parece inspirado em Edgar Allan Poe. Em “O Corvo”, o melhor poema de Poe. O “nunca mais” na terceira estrofe é uma evidência disso – e nada mais acrescentou ao devolver a folha datilografada com os versos.    

Surpreso, agradeci o comentário que acentuara as minhas dúvidas.
Não fazia a menor idéia de quem era Edgar Allan Poe.
Muito menos conhecia seu poema “O Corvo”, sendo incapaz de imaginar o que esse Corvo tinha a ver com o “nunca mais” de meus versos.
Claro que não revelei minha ignorância.
Optei por levar o constrangimento de minhas interrogações para casa.

Discretamente na hora do almoço perguntei a papai se conhecia o escritor Edgar Allan Poe e o que lera do poeta.
- Sim! Alguns contos e alguns poemas! Por que? – quis saber de mim.
- “O Corvo”, leu?
- Sim! Porém, bem melhor do que “O Corvo” é o conto “O Escaravelho de Ouro”, do mesmo autor. Não temos em casa qualquer livro de Poe, mas logo arranjo algum para você ler. Vai gostar – anunciou e cumpriu a promessa.

Mais à noite, numa antologia do escritor, que papai pegara emprestado com um cunhado advogado dono de bela biblioteca, li o conto “O Escaravelho de Ouro”.

(Era um livro luxuoso encadernado em couro, com inscrições em linhas douradas na capa e na lombada, obra de coleção denominada “Grandes Mestres da Literatura”, algo pomposo do tipo.

Cada um de seus volumes trazia – sem referenciar os respectivos tradutores - contos e poemas de algum dos mais importantes escritores do Ocidente, com ilustrações e respectiva biografia.

Já conhecia essa coleção desde que papai, dramatizando conforme seu gosto, lera para nós, reunidos em casa, o conto “Noites Brancas”, na antologia de Fiódor Dostoievski, quando arrancou lágrimas de tia Josefina Arrabal que nos visitava na oportunidade.)

Gostei imensamente de “O Escaravelho de Ouro”.
Jamais lera uma história tão bem articulada por suas deduções, sendo narrativa enigmática, mágica e misteriosa, o que me agarrou por todo o tempo da leitura.

Também li “O Corvo”, no mesmo livro da coleção de tio Jorge Acha. Gostei menos.
Na ocasião achei o poema mórbido e fúnebre, com noite bem diversa da noite de meus versos.
Considerei pesado, danado de triste, o seu fatalista “nunca mais”.

Afinal o que um adolescente pleno de felizes ilusões com a Literatura pode encontrar em “O Corvo”?
Preferi os gritos de minha Zulmira enlouquecida correndo atrás da felicidade.

Hoje gosto mais de “O Corvo”...
...e confesso que prefiro o poema na tradução de Fernando Pessoa, lida por mim quando universitário na Faculdade de Letras.

Poe que me perdoe. É fato raro, eu sei, mas tem vez que a tradução é bem melhor do que o original. Que fazer?
(Embora seja inviável qualquer tradução mais adequada para o “nevermore” - o “nunca mais” em inglês reproduzindo numa oportuníssima onomatopéia o grasnar do pássaro.)

“..........................................................................
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
  Libertar-se á...
Nunca mais!”
(Fernando Pessoa)

Picado pelo Escaravelho de Ouro, passei boa parte da semana lendo outras narrativas do escritor na dita antologia: “A Carta Roubada”, “A Queda da Casa de Usher”, “Os Crimes da Rua Morgue”. Outros mais...

...e desde então vivi algum tempo impressionado ao me ver diante de espelhos, devido à leitura do conto “William Wilson”, de Poe.

Seus poemas não me interessaram tanto.
Inteirei-me da vida do escritor...
... e quis mais... era pequena aquela antologia para mim.

Garoto insistente e teimoso pesquisei e descobri que a Editora Globo, de Porto Alegre, havia publicado as obras completas de Edgar Allan Poe traduzidas por Oscar Mendes e Milton Amado.   

(Vale registrar que muito me inspirei nesse adolescente irrequieto para criar o personagem Filipe Esperança, jovem “autor” e narrador de meu romance “A Sociedade de Todos os Povos”, editado em 2010 pela Manole/SP. Feliz inspiração.)

Encomendei o livro por reembolso postal.
Sem maior demora a encomenda chegou às minhas mãos em dezembro, perto do Natal.
Trazia uma inteligente introdução de Charles Baudelaire, outro Poeta que até então me era desconhecido.
Boa novidade para mim. 
Passei as férias de verão às voltas com Edgar Allan Poe.

De tudo o que li no volume da Globo gaúcha, o que mais me impressionou foi o texto “A Filosofia da Composição”, onde Poe detalha os passos da construção retórica de seu poema “O Corvo”, para mim oportuna descoberta do que é realmente escrever Poesia, algo bem diverso, mais intenso e mais difícil do que escrever versos.

Com o texto, a Poesia enfim mostrou sua cara.
Deixou de ser a Senhora Dona Sancha da canção folclórica:

“Senhora Dona Sancha,
Coberta de ouro e prata,
Descubra o seu rosto,
Queremos ver sua cara!”

Ser Poeta tornou-se algo complexo, extremamente exigente, distante de minhas possibilidades e competências.Creio que devido a isso tendi a me satisfazer com escrever prosa de ficção, contar histórias conforme já era meu hábito – talvez maior vocação - na convivência social.

Às vezes escrevo versos, o que quase sempre transfiro à “autoria” de algum personagem de minhas narrativas.
Estão em muitos de meus contos.

Poesia, para bem dizer, creio que nunca escrevi.
Trago sempre comigo a dúvida da Poesia, graças às justas exigências de “A Filosofia da Composição”.

(Se algum de meus versos ronda a situação de ser Poesia, imediatamente entrego o desafio à “autoria” e à responsabilidade do personagem Ludovico Serenari, um dos oito “escritores” de meu livro – uma espécie de “romance coletivo” - ainda inédito e intitulado “O Infinito de Pé”, obra em progresso há alguns anos, que pretendo terminar de escrever neste 2016...
...espero que sim.)

Hoje estou convencido de que “A Filosofia da Composição”, de Edgar Allan Poe, a bem da verdade é outro texto em prosa de ficção escrito por seu autor.
Iluminada narrativa com lógica devidamente articulada a favor do propósito de expor e valorizar a construção poética em “O Corvo”.

Apesar de seu pretendido feitio ensaístico, tem estrutura dedutiva bastante similar à do conto “O Escaravelho de Ouro”.
O que pouco importa e mal não faz por ser assim...
...muito pelo contrário.
O importante é que sugere com precisão o que é Poesia conforme suas exigentes complexidades retóricas, sendo essa filosofia de Poe valiosa lição para Poetas e leitores.


Com fraterno abraço,
José Arrabal



4 comentários

  1. Caminhar no universo das letras com José Arrabal é sempre encantador.

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  2. Ler José Arrabal é ouvi-lo, é se encantar com sua narrativa sem fim.

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  3. Prezado Arrabal,

    não o conheço pessoalmente, mas tive a oportunidade de conhecer seu blog por intermédio de um amigo comum: o Luiz.

    Gostei da história por detrás da meta-análise de seu processo de criação. Acredito que uma das muitas a construir a sua morada de escritor. E para ser sincero, gostei mais da história do que os motivos.

    Quase sempre o que nos impulsiona, aquele insight motivador de questões, às vezes perseguidas de modo infrutífero vida afora, é obscuro, regido ao acaso, sei lá...

    Mas de qualquer forma, a sua lembrança-história-estória, delicadamente embalada pelos sons, cheiros e cores do afeto, me sugerem um mundo particular, que se dá a conhecer como existência somente por meio de sua narrativa, deixando um convite, uma espécie de saudade e curiosidade no ar.

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  4. Olá!

    Nos conhecemos em uma exposição no Itau Cultural segunda feira, quando estava junto de sua amiga fotógrafa.
    Parabéns pelo ótimo trabalho, e segue o link onde publico minhas ilustrações, caso haja interesse :)

    Obrigado,

    Daniel

    Instagram.com/dan.amaralll

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