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A CIDADE DOS DIAS

quinta-feira, abril 23, 2015 José Arrabal 2 Comments Category :


O primeiro conto que escrevi nasceu do prazer de ouvir atento, tantas vezes, as histórias que papai lia para nós à noitinha após o jantar, narrativas presentes em minhas lembranças, às vezes um conto, às vezes um livro inteiro lido por ele em voz alta, capitulo após capítulo, noite após noite...

“A Ilha do Tesouro” (Robert Louis Stevenson), “Menino de Engenho” (José Lins do Rego), “Reinações de Narizinho” (Monteiro Lobato), “As Aventuras de Tom Sawyer” (Mark Twain), até mesmo “Noites Brancas” (Fiódor Dostoiévski) papai leu para nós todos reunidos – ele, mamãe, minha avó espanhola, eu, meu irmão mais novo, às vezes um tio, um primo, as empregadas - na sala de estar de nossa residência em Mimoso do Sul, no interior do Espírito Santo, onde nasci e vivi minha infância.

São as origens do primeiro conto que escrevi, conto que prosseguiu crescendo em mim graças aos contos lidos em sala de aula pela professora Zoé Bicalho ao nos ensinar a ler no grupo escolar da cidade.

Tinha os olhos sempre alegres quando lia, interpretava, vivia cada história para nós, os seus alunos. Era Alice, o Patinho Feio, a Branca de Neve e mesmo o Príncipe de Cinderela, a Bela Adormecida, mais as tranças de Rapunzel usadas durante a aula. Assim lia para nós e nos ensinava a gostar de ler, enquanto aprendíamos a ler e escrever com nossa mestra admirada por tudo o que nos contava e por tamanha felicidade que nos semeava.

Desde aí principiei a inventar histórias para meus colegas de colégio e amigos de rua, histórias com tintas de verdade acontecida, mas tudo mentira evidente que encantava alguns que ouviam. Aventuras tidas por vividas, coisas assim...

...a caverna com ossos, arcos e flechas que, durante as férias, descobri na fazenda de minha outra avó, a italiana, caverna em que entrei e onde encontrei um velho índio imortal, pajé disposto a pajelança comigo sob promessa de vida eterna se ficasse morando junto dele nessa caverna, o que decerto não quis e causou acirrada discussão entre meus colegas, uns querendo, outros, não, diante da oportunidade de viver para sempre, alguns pedindo que os levasse à caverna da fazenda, o que desconversei sem muito esticar essa aventura, inventando outra história para quem quisesse ouvir...         

...a história da pedra azul no topo da pedreira mais alta da cidade, jóia preciosa do tamanho de uma melancia, pedra que ninguém podia encarar, jamais ver diretamente, sob pena de ficar cego caso visse. Pedra azul vista por mim com a ajuda de um espelho, sem olhar diretamente para ela, confesso, conforme Perseu viu Medusa refletida em seu escudo bem polido de ousado guerreiro (caso ele olhasse a górgona diretamente seria transformado em pedra), história do herói lida por mim na coleção Tesouro da Juventude - presente dado por meu pai no aniversário em que completei oito anos de idade - lenda grega que a meu modo trouxe para a história da pedra azul.

Havia quem gostava dessas histórias que inventava e não eram poucos. Uns até acreditavam piamente no que contava, outros fingiam acreditar, alguns nunca acreditaram, mas ouviam curiosos. Muitos ainda hoje lembram dessas histórias quando nos reencontramos em minhas visitas a Mimoso do Sul. Tinha também quem detestava essa minha mania de inventar e contar histórias. Para estes eu não passava de um garoto mentiroso, de um tipo esquisito cheio de invencionices, meio maluco, um chato, enfim. Uns e outros têm suas justas razões, assim conforme há leitores amantes ou não de um escritor.

Certa ocasião, em vez de contar, resolvi escrever uma de minhas histórias nas páginas de um caderno escolar. Tinha nove anos de idade e era começo de agosto, um pouco antes do aniversário de papai. Pretendia lhe dar o conto de presente.

Lembro que não fui muito adiante na empreitada. Mas, embora inconcluso, este foi de fato o primeiro conto que escrevi, narrativa  guardada em minha memória desde o seu título de sugestivo feitio simbolista: A Cidade dos Dias.

Na ocasião não percebi a ambiguidade do título. Para mim era tão somente A Cidade dos Dias por acontecer em povoado sob o controle de uma família de ricaços com o sobrenome Dias, gente prepotente, cruel em seu mando e desmando urbano, sendo esta a minha intenção ao imaginar o enredo.

O surpreendente é que esse lance de dados se distingue do prosaico devido à nomeação de certas ruas nas quatro páginas em que principiei a escrever o conto: rua da Saudade, rua da Felicidade, rua da Tristeza, rua da Angústia, da Alegria, do Desencanto. De modo similar tinham nomes de sentimentos as avenidas, alamedas e praças do lugar.

Não fui muito além da descrição do vilarejo e de sua gente, sendo incapaz de imaginar e escrever que aventura aconteceria em cidade assim.

(Contar é bem mais fácil do que escrever uma história. É deveras complicado expressar os gestos e a entonação da voz através do registro escrito das palavras, de seus sons e sentidos e assim alcançar o ritmo preciso do texto, feliz habilidade que ainda hoje persigo, às vezes mais à vontade, às vezes com o mais exigente empenho, em dolorosa façanha, embora reconfortante dádiva quando conquistada. Todo escritor reconhece).

Levei a papai o que escrevera. Que me auxiliasse, pois era bom poeta, autor de contos e peças teatrais que me encantavam, além de interprete primoroso das histórias que lia em casa.

Ele leu o que escrevi. Creio que se emocionou, pois deu-me um carinhoso abraço, após demorada leitura (penso até que leu mais de uma vez.).
Pediu uma cópia do conto para guardar com ele.
- Ainda não terminei... – respondi um tanto sem graça, não menos ansioso.
- Nada demais. Deixe como está. Na hora certa você termina – comentou papai, sem me devolver o caderno. – Melhor escrever uma dessas histórias que você conta para seus colegas... uma história assim, mais própria para sua idade – sentenciou...

...o bastante para desistir de escrever A Cidade dos Dias que ficou sem desfecho...
Quer dizer...
...pode ser que sim, pode ser que não:

Às vezes desconfio que essa sugestão de papai, na ocasião, me trouxe ao encanto de escrever livros de histórias para crianças e jovens, conforme acontece ao longo de minha vida de escritor, também ciente de que pungentes sentimentos sempre guiam meus passos nos percursos das cidades de minhas histórias, não menos nas praças, avenidas, alamedas e ruas de minha existência na cidade dos dias.

Com fraterno abraço,

J. A.

2 comentários

  1. "A Cidade dos Dias". Um título excelente.

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  2. Lembranças que me levaram à minha Cabo Frio dos idos de cinquenta. Que infância/adolescência gostosa e repleta das histórias e leituras que o meu pai fazia como o Tio Juca!Um título interessante que pode ser aplicado muito bem às minhas histórias de de 66 anos.
    Fraterno abraço.
    Fernando Secco de Azevedo.

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