A CIDADE DOS DIAS
O primeiro conto que escrevi nasceu do prazer de
ouvir atento, tantas vezes, as histórias que papai lia para nós à noitinha após
o jantar, narrativas presentes em minhas lembranças, às vezes um conto, às
vezes um livro inteiro lido por ele em voz alta, capitulo após capítulo, noite
após noite...
“A Ilha do Tesouro” (Robert Louis Stevenson),
“Menino de Engenho” (José Lins do Rego), “Reinações de Narizinho” (Monteiro
Lobato), “As Aventuras de Tom Sawyer” (Mark Twain), até mesmo “Noites Brancas”
(Fiódor Dostoiévski) papai leu para nós todos reunidos – ele, mamãe, minha avó
espanhola, eu, meu irmão mais novo, às vezes um tio, um primo, as empregadas - na
sala de estar de nossa residência em Mimoso do Sul, no interior do Espírito
Santo, onde nasci e vivi minha infância.
São as origens do primeiro conto que escrevi, conto
que prosseguiu crescendo em mim graças aos contos lidos em sala de aula pela
professora Zoé Bicalho ao nos ensinar a ler no grupo escolar da cidade.
Tinha os olhos sempre alegres quando lia, interpretava,
vivia cada história para nós, os seus alunos. Era Alice, o Patinho Feio, a Branca
de Neve e mesmo o Príncipe de Cinderela, a Bela Adormecida, mais as tranças de
Rapunzel usadas durante a aula. Assim lia para nós e nos ensinava a gostar de
ler, enquanto aprendíamos a ler e escrever com nossa mestra admirada por tudo o
que nos contava e por tamanha felicidade que nos semeava.
Desde aí principiei a inventar histórias para meus
colegas de colégio e amigos de rua, histórias com tintas de verdade acontecida,
mas tudo mentira evidente que encantava alguns que ouviam. Aventuras tidas por
vividas, coisas assim...
...a caverna com ossos, arcos e flechas que, durante
as férias, descobri na fazenda de minha outra avó, a italiana, caverna em que
entrei e onde encontrei um velho índio imortal, pajé disposto a pajelança
comigo sob promessa de vida eterna se ficasse morando junto dele nessa caverna,
o que decerto não quis e causou acirrada discussão entre meus colegas, uns
querendo, outros, não, diante da oportunidade de viver para sempre, alguns
pedindo que os levasse à caverna da fazenda, o que desconversei sem muito
esticar essa aventura, inventando outra história para quem quisesse
ouvir...
...a história da pedra azul no topo da pedreira mais
alta da cidade, jóia preciosa do tamanho de uma melancia, pedra que ninguém
podia encarar, jamais ver diretamente, sob pena de ficar cego caso visse. Pedra
azul vista por mim com a ajuda de um espelho, sem olhar diretamente para ela,
confesso, conforme Perseu viu Medusa refletida em seu escudo bem polido de
ousado guerreiro (caso ele olhasse a górgona diretamente seria transformado em
pedra), história do herói lida por mim na coleção Tesouro da Juventude -
presente dado por meu pai no aniversário em que completei oito anos de idade - lenda
grega que a meu modo trouxe para a história da pedra azul.
Havia quem gostava dessas histórias que inventava e
não eram poucos. Uns até acreditavam piamente no que contava, outros fingiam
acreditar, alguns nunca acreditaram, mas ouviam curiosos. Muitos ainda hoje
lembram dessas histórias quando nos reencontramos em minhas visitas a Mimoso do
Sul. Tinha também quem detestava essa minha mania de inventar e contar
histórias. Para estes eu não passava de um garoto mentiroso, de um tipo
esquisito cheio de invencionices, meio maluco, um chato, enfim. Uns e outros têm
suas justas razões, assim conforme há leitores amantes ou não de um escritor.
Certa ocasião, em vez de contar, resolvi escrever
uma de minhas histórias nas páginas de um caderno escolar. Tinha nove anos de
idade e era começo de agosto, um pouco antes do aniversário de papai. Pretendia
lhe dar o conto de presente.
Lembro que não fui muito adiante na empreitada. Mas,
embora inconcluso, este foi de fato o primeiro conto que escrevi, narrativa guardada em minha memória desde o seu título de
sugestivo feitio simbolista: A Cidade dos Dias.
Na ocasião não percebi a ambiguidade do título. Para
mim era tão somente A Cidade dos Dias por acontecer em povoado sob o
controle de uma família de ricaços com o sobrenome Dias, gente prepotente,
cruel em seu mando e desmando urbano, sendo esta a minha intenção ao imaginar o
enredo.
O surpreendente é que esse lance de dados se distingue
do prosaico devido à nomeação de certas ruas nas quatro páginas em que
principiei a escrever o conto: rua da Saudade, rua da Felicidade, rua da
Tristeza, rua da Angústia, da Alegria, do Desencanto. De modo similar tinham nomes
de sentimentos as avenidas, alamedas e praças do lugar.
Não fui muito além da descrição do vilarejo e de sua
gente, sendo incapaz de imaginar e escrever que aventura aconteceria em cidade
assim.
(Contar é bem mais fácil do que escrever uma
história. É deveras complicado expressar os gestos e a entonação da voz através
do registro escrito das palavras, de seus sons e sentidos e assim alcançar o
ritmo preciso do texto, feliz habilidade que ainda hoje persigo, às vezes mais
à vontade, às vezes com o mais exigente empenho, em dolorosa façanha, embora
reconfortante dádiva quando conquistada. Todo escritor reconhece).
Levei a papai o que escrevera. Que me auxiliasse,
pois era bom poeta, autor de contos e peças teatrais que me encantavam, além de
interprete primoroso das histórias que lia em casa.
Ele leu o que escrevi. Creio que se emocionou, pois
deu-me um carinhoso abraço, após demorada leitura (penso até que leu mais de
uma vez.).
Pediu uma cópia do conto para guardar com ele.
- Ainda não terminei... – respondi um tanto sem
graça, não menos ansioso.
- Nada demais. Deixe como está. Na hora certa você
termina – comentou papai, sem me devolver o caderno. – Melhor escrever uma
dessas histórias que você conta para seus colegas... uma história assim, mais
própria para sua idade – sentenciou...
...o bastante para desistir de escrever A Cidade
dos Dias que ficou sem desfecho...
Quer dizer...
...pode ser que sim, pode ser que não:
Às vezes desconfio que essa sugestão de papai, na
ocasião, me trouxe ao encanto de escrever livros de histórias para crianças e
jovens, conforme acontece ao longo de minha vida de escritor, também ciente de
que pungentes sentimentos sempre guiam meus passos nos percursos das cidades de
minhas histórias, não menos nas praças, avenidas, alamedas e ruas de minha
existência na cidade dos dias.
Com fraterno abraço,
J. A.
2 comentários
"A Cidade dos Dias". Um título excelente.
ResponderExcluirLembranças que me levaram à minha Cabo Frio dos idos de cinquenta. Que infância/adolescência gostosa e repleta das histórias e leituras que o meu pai fazia como o Tio Juca!Um título interessante que pode ser aplicado muito bem às minhas histórias de de 66 anos.
ResponderExcluirFraterno abraço.
Fernando Secco de Azevedo.