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NA PRESENÇA DA MORTE

segunda-feira, maio 04, 2015 José Arrabal 1 Comments Category :



Contos de mistério e terror com a presença da morte ou de fantasmas, situações de suspense, enfim, histórias de meter medo, pavor, li poucas e pouquíssimas vezes as escrevi. Sei contudo contar e as conto com eloquência capaz de impressionar quem escuta.  
Nessas ocasiões costumo contar histórias de meus encontros com gente que morreu, o que tantas vezes já me aconteceu nos mais diversos lugares... no andar do prédio em que vivo, em algum ônibus, no metrô, em diversos logradouros da cidade...
(No Parque Trianon, na Praça da Sé, na República, nas cercanias da 25 de Março e nos arredores da Bolsa de Valores... há sempre mortos circulando por lá.)
...avenidas, ruas, alamedas e praças de São Paulo, onde já conversei com mortos que nos visitam. Lance que revelo a uns e outros, livre de temor, ciente de que os vivos são mais perigosos do que os mortos.

Ao contar uma dessas histórias acontecidas comigo, quem ouve me escuta com precisa curiosidade, embora descrente, certo de que tudo não passa de mera invencionice... ainda que seja verdade.

Não costumo escrever histórias desse feitio.
Raras vezes escrevi e jamais publiquei.  
A maioria desses poucos contos de minha lavra permanece em projeto. São meras
anotações de suas tramas ou narrativas escritas sem desfecho. Tenho um punhado de ideias para histórias do gênero, todas anotadas e guardadas nas gavetas de casa.

Nem sempre são enredos com fantasmas. Narram também outras situações inusitadas, surpreendentes, conforme o conto da invasão de piolhos, com milhares de piolhos inundando as gavetas e a sala de um jovem executivo de uma financeira, tipo comum, desses que invadem a Avenida Paulista na hora do almoço, metidos em seus ternos escuros, tal qual pinguins, dezenas e mais dezenas de pinguins em agudo corre-corre na Paulista.

Deixam seus escritórios, almoçam rapidinho e às pressas retornam às suas salas de trabalho (conforme acontece com o jovem do projetado conto que ainda não terminei de escrever) inundadas de piolhos em implacável perseguição... até onde não sei, pois não alcancei o fim da trama.

Sei que os piolhos prosseguem no encalço do jovem executivo que, apavorado e em disparada, alcança os corredores da financeira onde reencontra piolhos e mais piolhos, milhares de piolhos também no elevador, no hall de entrada do prédio, no calçadão da avenida, no estacionamento em que ele deixara o carro.... quando os piolhos escalam o seu terno escuro, invadem seus bolsos, pele e pelos, seus sentidos, olhos, ouvidos, nariz, lábios, língua, braços e mãos, sexo, pernas e pés, decerto indo além,  embora desconheça até onde irão...  pois não imagino o restante do conto inconcluso, ciente apenas de que um dia terei em mãos o destino dessa história... ou não...

Bem mais fácil foi escrever O Vulto, outra de minhas raríssimas narrativas com jeito de história de terror, mistério e medo, presença da morte, conto que consegui terminar, chegar a um desfecho, enredo narrado em primeira pessoa pelo próprio protagonista da trama - um paciente em leito de hospital após passar por delicada cirurgia - o que transcrevo aqui completando a postagem de agora:

O VULTO
A morte? A morte sempre tem hora e vez. Não duvido e não duvido mais desde o que aconteceu comigo há três anos, fato que não esqueço, sendo só contar para arrepiar, não de medo, mais por dúvidas, pois sempre restam algumas em tudo.

Imagine só. Estava eu em leito de hospital, operado de úlcera perfurada. Foi, sim. Na hora, despertava da anestesia, aos pouquinhos, devagar, só, no quarto, tonto e turbado.

Olho aberto, via tudo nublado.
Eis que então na porta do quarto vi um vulto magro, alto, envolto em pano cinza.
Seu corpo inteiro, ventava forte em torno de seu corpo inteiro e ele segurava consigo uma espécie de bastão com estandarte metálico e curvo na ponta do cabo longo, o que mais me pareceu ser uma estranha foice.

Coisa que hoje imagino melhor, com nitidez, sendo mesmo o que era, uma grande foice.
Foi, sim, por mais que digam a mim, quando conto, feito agora, que tudo não passou de fantasia minha. O que sequer importa, pois fosse ou não fantasia, foi o que foi.

Além, mais pressenti que o vulto me enxergava com atenção insegura. 
Mirava assim, disposto, porém desconfiado.
 Notei. Tinha o olhar de quem duvida e confere.

Por mais que digam a mim, quando conto, que tudo não passou de um sonho, o que sequer importa, pois fosse ou não, sonho, foi o que foi:  aquele vulto alto, lá, com uma grande foice na porta do quarto de meu leito no hospital. E, se ventava forte, só ventava em torno dele, do corpo inteiro dele, o vento agitando os panos, o manto cinza que envolvia seu corpo, um vulto com a dúvida no olhar, mais sua grande foice em pé na mão.

Creio que vi, crendo ou descrendo no que via na porta do quarto, detido em meu susto ao ver. Deveras até hoje estranho a visita incerta, comigo entregue também à duvida...  do medo.

Sim, porque diante da morte nunca temos certeza do medo que sentimos. Com certeza, se é que sentimos medo nessa hora, pois quem há de saber se o medo de então é medo mesmo? 
Ou é alívio, o que sentimos? Diante da morte...
...justo alívio por certa bem aventurança devida, a liberdade prenunciada pela presença da morte. Livre estando então quem morre, por não mais se encontrar detido nas restrições do tempo em vida.

Quem sabe?Diante da morte, na frente do fim da vida, quem sabe é assim?
Sendo alívio em vez de medo, o que sentimos.

Aí! Houve o que houve!
Tudo porque perguntei a hora.
Não mais do que isso. Por lhe perguntar a hora. Ao vulto.

Ele? Não era de ter voz rouca. Nem grave. Nem soturna. Nada disso. Tinha voz de quem seduz, voz de bom tempero e temperatura precisa, a voz da morte, sim.

Apenas respondeu, mas conforme quem diz somente para si, me respondendo na hora:
- Ora, a hora de agora? Não! Não é ainda a sua hora! – sussurrou seguro, embora um tanto a contragosto.
Disto desapareceu contrariado, aquele vulto, creio que sim.

Quanto a mim? Sinceramente, confesso e juro...
...abandonado, nunca me senti tão sozinho.

Com fraterno abraço,
J. A.

1 comentários

  1. Você acha que seu processo de formação pessoal como escritor foi semelhante de alguma forma ao Retrato do Artista Quando Jovem do Joyce? Se identifica com alguns traços de comportamento do Stephen Dedalus ou alguns questionamentos que ele tinha?

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