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A DÚVIDA DA POESIA

sexta-feira, fevereiro 26, 2016 José Arrabal 3 Comments Category :


O hábito de colecionar e cultuar rimas na infância e adolescência não fez de mim um poeta. Trouxe intimidade com as palavras, com seus sons e sentidos. Ajudou na composição de alguns versos presentes em meus contos, versos de personagens com que procuro valorizar a prosa de ficção.   

Ser poeta é exercício raro no enfrentamento dos desafios da língua e domínio da linguagem. 
Para tanto não basta empilhar frases umas sobre as outras, entrelaçá-las com rimas ou musicalidade verbal. Isto não é propriamente poesia... 

...são versos com imagens dedicadas a impressionar o senso comum do leitor. Trazem aliterações e onomatopéias, jogos de semelhanças ou antíteses sonoras, palavras adequadas ou não, tantas vezes com generosa afetividade, ânimo humanista e não menos precisa beleza, importância valiosa... 

...sobretudo numa atualidade de extremada competição nas relações de convivência em que as pessoas se desfiguram com máscaras, se dilaceram umas as outras com brutal ganância e a perversa violência dos poderes dominantes forja-se de banalidade cotidiana, naturalizada carnificina nas controvérsias. 

Os mais exigentes, entretanto, proclamam que “na contemporaneidade pós-moderna sumiram as artes poéticas e sobraram mil solitários patetas que por vaidade e carência de atenção alheia se proclamam poetas”, conforme li recentemente numa revista de estudantes de Letras. 

Ponto de vista radical similar à surpreendente afirmação do escritor Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura, em sua palestra “O Ofício do Poeta”, discurso atual, ainda que pronunciado há quarenta anos, ensaio publicado mais tarde em seu livro “A Consciência das Palavras” (Companhia das Letras - 1990):
Se formos bastante rigorosos em relação ao nosso tempo e principalmente em relação a nós mesmos, poderemos chegar à conclusão de que hoje não existe poeta algum, embora tenhamos de desejar apaixonadamente a existência de alguns.” 

Evidente que há poetas e poesias em nosso tempo, mas a advertência tem sua significativa intenção...
...no entender de Canetti, se há carência de poetas, não menos há uma apaixonada necessidade de poesia nos dias de hoje. 
Uma poesia que traga em seu corpo responsabilidades para com a vida, metamorfoses, mudanças, transformações vitais contra os descalabros da contemporaneidade. 

Na mesma palestra de 1976, Elias Canetti expressa sua consideração para com a existência de possíveis poetas em nossa época: “... o que ocorre na realidade é que hoje ninguém será poeta se não duvidar seriamente do direito de ser”.   

Ciente disto, recordo com bom humor o que me aconteceu, quando instigado pela ingenuidade da adolescência desejei ardentemente...
...e em vão decidi ser poeta.

Sentia-me bastante animado. 
Tinha em mãos dois pequenos livros de belo feitio - obras publicadas pelo Ministério da Educação e Cultura - cada um deles com cinqüenta poemas escolhidos por seus autores, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade...
...presentes que uma prima professora trouxera para mim do Rio de Janeiro onde ela fora se aperfeiçoar em curso do Instituto Nacional de Educação Pública (INEP).

Apresentado a Bandeira e a Drummond, li suas poesias com estranhamento e surpreendente descoberta de acentuada liberdade.
  
Fui imediatamente seduzido por Manuel Bandeira (“Belo belo belo, / Tenho tudo quanto quero.”). 
Carlos Drummond de Andrade chegou devagar, embora tenha me alcançado diretamente com intrigante poema que mais parecia escrito e endereçado a mim:
.......................
Sozinho no escuro
Qual bicho do mato,
Sem teogonia,
Sem parede nua
Para se encostar,
Sem cavalo preto
Que fuja a galope,
Você marcha, José!
José, para onde?

De fato Bandeira era mais leve, mais musical, brincava mais. 
Trouxe horizonte que me encantou de imediato:
Estou farto de lirismo comedido
................................................
Não quero mais saber de lirismo que não é libertação

Creio que por não ser poeta e, sim, essencialmente um prosador, sempre preferi a poesia Épica - as grandes epopéias do passado e os poemas narrativos do presente, desde minhas primeiras leituras no volume com “Os Lusíadas” da biblioteca de casa. 
Sou por demais exigente com a poesia Lírica, que a bem da verdade me entusiasma menos. Limite meu.
Os poemas de Bandeira, no livro do MEC, quase sempre traziam uma historinha, uma passagem singela, bom humor, lembranças de infância com jeito de criança contar, mesmo quando focavam situação dolorosa.

Carlos Drummond tinha para mim um sabor mais intimista.
Contava histórias em alguns de seus poemas no livro do MEC, mas eram histórias com tempero um tanto serião. 
Por isso, adolescente, fiz de Manuel Bandeira o meu favorito: 
Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples

Copiei poemas de Manuel Bandeira.
Parodiei poemas de Manuel Bandeira:
Os cavalinhos correndo,
E nós cavalões, comendo...
Tua beleza, Manuel,
Acabou me enlouquecendo.

Paródias com a devida desculpa, meus pretensos estudos para ser poeta:
Imagino Bandeira entrando no céu:
- Licença, meu santo!
E São Pedro com seus versos:
- Entra, Manuel. Você não precisa pedir licença.   

Tanto brinquei e fui feliz com a poesia de Manuel Bandeira que fiz muitos versos usando seus modos de poeta. 

Em meus manuscritos antigos, papelada velha que ainda guardo comigo – relíquias – há um poeminha dentre outros dessa época que me parece ser um abusado plágio da poesia de Bandeira: 
TRISTE VIDA

Morreu de joelhos
Pedindo clemência.

Morreu de joelhos
Clamando inocência.

Morreu de joelhos.

Findou a seqüência
Com todos tomando café
Às três horas de pé
Na Avenida Rio Branco.

Mas isso não é poesia.
Os versos anteriores
São de indiferença.

As três primeiras estrofes:
Manchetes de jornal.     

Na folha manuscrita tive o cuidado de anotar: Poeminha herdado de Manuel Bandeira, graças à leitura de seu livro “50 Poemas Escolhidos Pelo Autor”, publicado pelo Ministério da Educação e Cultura.  

Drummond, li e declamei poemas de sua autoria nas festas cívicas da cidade e do colégio, mas nunca ousei parodiar sua poesia, muito menos plagiar. É ousadia que ninguém alcança. 
Algumas vezes entramos em desacordo. 
Jamais aceitei as normas do poema “Procura da Poesia”: 
Não faça versos sobre acontecimentos”. 
Ora, claro que é possível fazer versos e até poesia sobre acontecimentos. As epopéias existem belíssimas e eternas, desmentindo Carlos.

O melhor de Drummond de Andrade foi a dramatização escolar que fizemos em jogral com o poema “Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin”.  
Um espetáculo! Sucesso inesquecível!:
........................................................................
Ó Carlito, meu e nosso amigo,
Teus sapatos e teu bigode
Caminham numa estrada
De pó e esperança

Verdade é que apenas mais tarde afeiçoei-me bem melhor a Drummond. Naqueles dias de adolescência era demais para mim sua vastidão poética, intensa Máquina do Mundo.   
Também custei a me entender com Fernando Pessoa. 
Não é fácil para um morador de povoado sentir-se de imediato à vontade em imensas metrópoles...

...entretanto foi um bom tempo em que quase cheguei lá, nesse mar do lado de lá que sempre me parece ser o universo criador dos poetas. 

Lia poesia sem cessar, em antologias da biblioteca de casa, nos dezoito volumes da coleção “Tesouro da Juventude”, que ganhara em aniversário, havia também os poemas de papai e dos demais poetas da cidade. Lia e relia. Decorava uns e outros.

Escrevi muitos versos. Tenho alguns deles comigo. 
Beirei a certeza de que seria poeta, rondei a fronteira...
...mas... a dúvida... a dúvida da poesia – quem não a tem, quem não a sente? - estacionou-me na vaga devida.

Deus quer, o homem faz, a obra nasce” (F. P.).
Comigo acontece que Deus não quis.
Ainda que teimasse, a obra que nasceu é outra. Histórias e mais histórias que invento e escrevo, narrativas solidárias com a poesia.
Nem mais nem menos. 
Conto noutra ocasião, pois já se alonga a postagem.   
Ultrapassa a paciência do leitor.


Com fraterno abraço,
José Arrabal

3 comentários

  1. Que possamos sempre
    ousar fazer poesia.
    Se fosse possível
    viver da ousadia,
    tanto o faria,
    que ganharia a vida
    escrevendo poesia.

    Grande abraço,
    Alex

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  2. Ora, se ultrapassa a paciência do leitor, então precisamos formar leitores mais pacientes. Esta ditadura do texto curto, do vídeo rápido, das letras corridas, ainda acaba por terminar de nos endurecer...

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  3. Ser ou não ser poeta eis a questão? Nem sempre é ser ou não ser, em termos de ser poeta. Ás vezes é não ser sendo ou tentar ser não sendo. Ou seja não é o homem que escolhe ser poeta, mas a poesia da vida que persegue determinados homens e os transforma em poetas.

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