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AS RIMAS E A MEMÓRIA

quinta-feira, fevereiro 18, 2016 José Arrabal 2 Comments Category :

A curiosidade por palavras que rimam é sentimento antigo que ainda mantenho. Principiou em minha infância graças à influência das modinhas de carnaval que me ensinavam e aprendia rapidamente, cantava a toda hora com certa graça de criança esperta.

Mais tarde, ao saber ler e escrever, passei a copiar e colecionar rimas num caderno comum com o desenho de dois colegiais empunhando a bandeira brasileira na capa.
Caderno de nome “Avante”, também com a letra do Hino Nacional impressa atrás.
(Patriotada arcaica herdada dos anos 1937/45 da ditadura nacionalista do Estado Novo de Getúlio Vargas.)

Lembro bem...
...todos os dias incluía nesse caderno pares de palavras rimadas encontradas em letras de músicas e poemas ou em pesquisas no meu generoso Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, publicação da Editora Lello & Irmão, presente dado a mim por papai durante meu Curso Primário no Grupo Escolar da cidade.

Outra bendita mina de rimas para copiar foi a imponente edição de Os Lusíadas (Luis Vaz de Camões) da biblioteca de casa.
Propriamente não li o poema.
Apenas percorri as páginas da epopéia camoniana de onde pincei e de lá trouxe rimas extremamente originais à minha coleção.

(Na época era obra difícil para mim, embora tenha me impressionado com suas estrofes mais emblemáticas. Decorei algumas delas que passei a recitar cativando a atenção, a simpatia e talvez a paciência de parentes, amigos da família e colegas de escola.).

Rimar tornou-se uma obsessão, uma espécie de cacoete, marca registrada de minhas conversas cotidianas com quem fosse. A mais simples frase dita por mim vinha sempre seguida por outra contendo uma rima precisa.
Para uns, isso era até divertido.
Para outros, uma acentuada chatice.
Ambos certamente com razão.

Recordo que numa tarde quente do final de novembro, creio que em 1956 (perto de meus dez anos de idade), estando no quintal de casa, provavelmente com fome e à cata de alguma fruta de nosso pomar, eis que sintomaticamente encantei-me com a sonoridade da palavra MERENDA.
(Há sempre alguma razão para a presença repentina de certas palavras em nosso imaginário.)
Disto parti em busca de possíveis rimas para MERENDA.

(Sim! De fato foi em 1956 que isso aconteceu, ano em que meses antes, junto de colegas da vizinhança, havíamos armado no mesmo quintal um pequeno circo ao ar livre com arquibancada improvisada e picadeiro sob as copas de uma grande jaqueira e um pé de jenipapo.
Circo que durou duas semanas com a fiel presença de seu público pagante.

Para o circo inventei eficiente refrão publicitário:

“Trate de comparecer
Lá no quintal do José!
Acredite e venha ver,
Grande Circo Barnabé!
Não senta quem fica
Em pé!”

Deu certo, mas essa é uma história para contar noutra ocasião. Vale aguardar.)

Primeiro, lembrei de TENDA.
Em seguida, PRENDA e RENDA.
Longe de demorar, LENDA somou-se ao quarteto.
MERENDA, TENDA, PRENDA, RENDA, LENDA.
Rimas simples, mas o suficiente para brincar.
Passei a repetir essas cinco palavras num ritmo incessante.
Primeiro na ordem em que surgiram.
Daí, fui de trás para frente.

Disto, livre de qualquer critério, embaralhei as palavras o bastante para desconfiar que com rimas a ordem das parcelas altera o produto.
Por fim, cansei.

Longe de desperdiçar essas palavras irmanadas por suas rimas, fiz com elas um pequeno poema de poucas estrofes.
Não faço a menor idéia do que diziam seus versos.

Apenas a lembrança me faz crer que com eles construí animada paródia de marchinha carnavalesca da época, passando a cantarolar até encontrar e pegar bela manga madura na mangueira do pomar.

Sempre lembro dessa história.
Durante bom tempo acreditei piamente que na ocasião havia parodiado “Me dá um dinheiro aí...”, sucesso do cantor Moacir Franco.
Mero engano. Não em vão, rasteira criativa de minha memória, conforme constatei ao descobrir que “Me dá um dinheiro aí...” é marchinha de um carnaval bem posterior a meu encantamento com MERENDA e sua família.

De fato a memória por costume nos conduz a reconstruções fantasiosas do passado, o que não acontece apenas comigo, mas com qualquer um, em especial com os mais criativos escritores.
Por conta disto costumo ler suas autobiografias ciente de que são obras de ficção, seus melhores romances, onde reconstroem a história da vida com a sapiência da arte de narrar.

Nada demais.
Toda subjetividade sempre resiste à verdade, salva então pela estória, quando não, pela poesia.
Que assim seja...


Com fraterno abraço,
José Arrabal

2 comentários

  1. Oi Arrabal. Gostei muito desse seu post. Fez-me lembrar de um caderno parecido ao seu que tive quando criança. E que nele anotava alguns sonhos. Morava em Rio Claro/SP e adorava ler gibis. E eles me faziam sonhar com coisas fantásticas as quais registrava nesse caderno. Tive uma infância pobre. Não tinha dinheiro para comprar gibis novos. Os trocava na proporção de 2x1 em uma "loja" que não carregava o nome de "sebo". Era apenas a loja do "Seu Zé sem perna", um senhor que tinha um defeito de nascença. Um dia contarei para você essa estória. Mas, por ora, quero o parabenizar pelo blog. Um grande abraço. Augusto Martini

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