ENCONTRO IMPREVISTO
A criação de uma personagem, além de promover
lembranças, muitas vezes desencadeia surpresas. Não raro me espanto ao encontrar
nas ruas da cidade alguém com fisionomia similar à de um tipo presente em
minhas histórias.
De longe observo a pessoa sem me aproximar. No
íntimo temo que a semelhança seja mais do que mera coincidência. Se comento o
fato com escritores amigos, todos são unânimes em dizer que isso já aconteceu
com eles.
Há muitos anos, quando jovem jornalista no Rio de
Janeiro, ao entrevistar certa escritora de justo prestígio público, dela ouvi que
suas personagens costumavam invadir o dia a dia da vida real circulando por praças
e avenidas cariocas.
Afiançou que possuía provas concretas disso e sua
revelação não pareceu ser uma simples invencionice dela para impressionar, pois
se mostrava extremamente confiante no que segredava.
Claro que não acreditei em sua estranha história. Tão
somente escutei tudo calado, longe de exigir uma comprovação da insólita
ocorrência.
Não nego que temia sua veracidade, certamente
bastante distante de querer qualquer encontro pessoal, em ruela, bar ou
livraria, com personagens de contos, novelas ou romances.
Decerto não desejo viver uma experiência do tipo, entretanto
reconheço que já ocorreu comigo algo similar em ocasião surpreendente, o que
sempre recordo um tanto assustado e não menos sobrecarregado de dúvidas com relação
ao acontecido.
O fato se deu quando, em fevereiro de 2009, levei a
uma editora paulista os originais de meu livro “A Sociedade de Todos os
Povos”.
(Vale antes esclarecer que esse romance é narrado
por um jovem de 18 anos, moço recentemente aprovado no vestibular de Jornalismo,
na Universidade de São Paulo, desejoso de tornar-se escritor de ficção,
personagem chamado Filipe Esperanza Ortega, bisneto de espanhóis e neto de avós
japoneses e judeus sefarditas.
Um dos intuitos da trama de sua história é mostrar
que a sociedade brasileira resulta do entrelaçamento de vários povos, daí o título
da obra.)
Chovia ao retornar da editora onde deixara os
originais do romance para avaliação e possível publicação.
Caminhava protegido sob meu guarda-chuva, indo na
direção do ponto de parada do ônibus que me levaria para casa.
No percurso passei por um estudante que se escondia
da chuva sob o tapume de um prédio em construção.
O jovem, nada tímido, pediu-me carona em meu
guarda-chuva até a guarita de ônibus mais próxima, justamente para onde eu seguia.
Concordei e fomos caminhando juntos.
Logo principiamos a conversar.
Ao perguntar seu nome, disse que se chamava Filipe,
o que considerei normal.
Sem maior demora, contente e falante, também contou que
fora aprovado no vestibular de Jornalismo, na USP, o que estranhei ao me
inteirar dessa segunda coincidência com as características da principal personagem
de meu livro.
Tal estranhamento acirrou-se bem mais, ao saber que esse
Filipe era bisneto de espanhóis, apesar de seus olhos amendoados típicos de um
descendente de orientais.
Fiquei por fim ainda mais incomodado quando o jovem
me adiantou seu desejo de ser escritor.
Surpreso e inquieto, preferi distanciar-me dessas
estranhezas.
De imediato, deixei o tal Filipe no ponto de ônibus.
Às pressas, afastei-me e, na esquina da rua, deveras
impressionado, não menos atormentado com o acontecido, peguei um táxi de volta
para casa.
Hoje quero acreditar que apenas me aconteceu uma
abusada coincidência do destino.
Pode ser que sim.
Ou será que não?
Sei que não mais encontrei esse Filipe.
Já o outro, o Filipe personagem de meu romance, está
lá, nas páginas do livro “A Sociedade de Todos os Povos”, obra algum
tempo depois publicada pela Editora Manole em bem cuidada edição.
Melhor assim.
E que assim seja.
Fraterno abraço
J. A.
2 comentários
Alvíssaras, viva! Seja bem-vindo à blogosfera.
ResponderExcluirCurioso que eu já tinha lido esses três saborosos textos com os quais você inaugura o blog, a respeito do que rodeia (termo impreciso meu) essa tarefa mágica de um escritor. Ou será que não li todos e acho que li, por tanto que já conversamos, sua visão de literatura já clara para mim a ponto de eu a entender e reconhecer como algo tão próximo?
Mas com certeza li no mínimo dois deles, por último o que você conta da realidade da existência de personagens como o menino Filipe.
Enfim, é com enorme prazer que agora fico à espera do que virá. Aguardo novos textos!
Abraços grandes.
Essa linha tênue que se traça entre a ficção é a realidade é mesmo um mistério.Um mistério delicioso e necessário. Delicioso porque brinca de esconde-esconde, necessário porque só a realidade não basta. E assim caminhamos com ele, o mistério. E a vida se torna uma aventura (de risco, é verdade) e fica mais interessante. Esperando novos textos.
ResponderExcluir