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BRASÍLIA TANGO E CANDANGO

terça-feira, abril 19, 2016 José Arrabal 1 Comments Category :

Em janeiro de 1960 viajei para o Rio.
Passei o mês hospedado em residência de parentes na rua Valparaíso, entre o Largo da Segunda-Feira e a Praça Saens Peña, na Tijuca.

Logo aprendi a circular pela cidade desde a manhã até a noitinha. 
Visitei seus pontos turísticos tradicionais – Pão de Açúcar, Cristo Redentor, Jardim Botânico, Zoológico, a Praça da República, a catedral da Candelária, o Passeio Público, o Flamengo, o prédio da UNE, Copacabana...
... e de lá alcancei Ipanema, bairro com fama crescente, pátria da Bossa Nova, samba suave um tanto diferente:
“Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural.”

Freqüentei os melhores cinemas cariocas.  
Conheci o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, o Museu de Belas Artes, a Academia Brasileira de Letras. 

Pela primeira vez na vida entrei numa grande livraria...
... e estive em outras não menores, no centro da cidade. 
Comprei livros em cada uma delas. 

Com grata surpresa encontrei e adquiri, na Livraria São José, perto da avenida Rio Branco, uma antologia com poemas – vida e obra – de Vladimir Maiakovski, escritor soviético que até então só conhecia de nome apresentado a mim pelo Maestro Lívio Benedicto, professor de Canto Orfeônico no Ginásio em Mimoso do Sul. 
“Por cima do abismo
Estende-se minh’alma
Tensa como um cabo
Onde me equilibro
Malabarista de palavras.” 

Na oportunidade vi Manuel Bandeira velhinho juntinho de mim na São José. Não ousei me aproximar, conversar com o poeta de minhas apaixonadas leituras de poesia.
Sua presença levou-me a freqüentar a livraria na esperança de ter por perto outros escritores... 
... o que não foi em vão.

Noutra ocasião, vi Cecília Meireles, seu sorriso pleno...
...e, no dia seguinte, vi Rachel de Queiroz, que tempos depois, quando universitário e jornalista, tornou-se amiga, gentilíssima pessoa, cronista nos Diários Associados onde trabalhávamos...         

... vi ainda o embaixador Gilberto Amado - escritor hoje injustamente esquecido – que então visitava a São José em companhia de João Guimarães Rosa. 
Meninos, eu vi!   

Vi também Clarice Lispector! 
Jovem, mulher belíssima, na ocasião acompanhada de uma garota que desconfio e teimo ser Nélida Piñon, o que jamais confirmei.

Era costume de escritores freqüentar a São José. 
Outros escritores devo ter visto por lá, sem contudo reconhecê-los.
(Encontros que me concederam narrativa bem humorada, hoje conto em meu livro “A Chave e Além da Chave” publicado pela Editora Paulinas). 

Passei pelo Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador, ao visitar tia Josefina, irmã de papai, sempre alegre, brincalhona, inteligente, dona de fazer a comida mais gostosa do mundo.
Também fui a Niterói para estar com tia Chiquita, outra irmã de papai, inesquecível tia Chiquita. 

Fiquei quatro dias hospedado em seu apartamento, doutrinado por dois primos estudantes de Medicina, ambos entusiasmados com a Revolução Cubana, os dois semeando em meus horizontes idéias antiimperialistas e socialistas.

Leram para mim em voz alta um instigante livro hoje esquecido, embora devesse ser lembrado cotidianamente – “Que sabe você sobre petróleo?” - obra de combativo pensador nacionalista, o escritor Gondim da Fonseca, ardente defensor da Petrobrás e do direito de termos no Brasil o nosso petróleo defendido contra as falcatruas, o olho gordo e ganancioso das empresas estrangeiras. 

Leram também em voz alta e não menos entusiasmados, o que ouvi atento, alguns trechos em espanhol de “La Historia Me Absolverá”, vigoroso depoimento de Fidel Castro, defesa de sua determinação revolucionária. Leitura que me acentuou a simpatia pelo então jovem libertador cubano, homem de coragem admirável, mensageiro de um novo tempo para a América Latina.

Desses primos ganhei de presente os três volumes de “Subterrâneos da Liberdade”, obra de leitura obrigatória, epopéia narrativa de Jorge Amado focando os anos difíceis da ditadura nacionalista do Estado Novo no Brasil. 
Jorge, amado, de quem, no ano anterior, eu lera “Gabriela, Cravo e Canela”, romance temperado com politizada sensualidade que me fascinou a adolescência mais a vida toda sempre. 

(Certa vez, em Bienal de Livros paulista, creio que por ocasião de lançamento do romance “Tocaia Grande”,  já jornalista entrão e metido a besta, perguntei a Jorge Amado se por acaso conhecera pessoalmente a sua Gabriela em algum mundo, rua, lar, bar ou bordel.
Jorge, atencioso, respondeu parodiando Flaubert ao falar de Bovary:
- Rapaz! Gabriela sou eu e também sou Nacib, Mundinho, o Coronel Ramiro Bastos, Ilhéus, toda a Bahia e o Brasil em mim nos olhos, em todos os meus sentidos! – sorriu solidário.)

Verdade! Verdade, também... 
...é que deixei o Rio de Janeiro sem ver pessoalmente Carlos Drummond de Andrade, embora tenham assegurado que ele costumava freqüentar a livraria tão visitada por nossos escritores.
Não vi o poeta de “José ”.  
Generosidade que o destino só concedeu tempos mais tarde.
“Mundo mundo
Vasto mundo 
.....................”.

Retornei a Mimoso do Sul no finzinho de janeiro com vasta bagagem crente e confiante de que vivíamos uma época de metamorfoses, transformações geradas nos anos mais recentes da década de 1950 no Brasil... 
...e num mundo com os olhos voltados para o infinito percurso de conquistas da corrida espacial em progresso:
- A Terra é azul! – confirmaria no ano seguinte o astronauta soviético Yuri Gagarin.  

Tempo novo, de Bossa Nova, do Cinema Novo, de uma nova poesia concreta emergente, de uma prosa ousada em contos e romances, de revistas de arte com aprimorados feitios gráficos, tempo de uma outra arquitetura no Brasil e de uma nova capital da República a ser inaugurada em abril de 1960. (Cidade moderna, bem planejada, que visitei em 1963, quando Jango era Presidente).

Panorama pleno de novidades refletidas no dia a dia, na moda, no comportamento das pessoas em convivência social ansiosa por liberdades, cientes de que o país desafiava e vencia seu atraso histórico secular antes imposto por tacanhos donos do poder, os senhores de uma superada economia agrária. 
Tempo agora de industrialização acelerada, com aumento significativo de empregos, bons salários, avanços democráticos.

Na regência dessa sinfonia de mudanças brasileiras, Juscelino Kubitschek de Oliveira, o Presidente seresteiro, o Presidente pé-de-valsa, simpático, risonho, cordial Presidente Bossa-Nova, estadista democrata empenhado em modernizar o Brasil, expandir nossas fronteiras internas, encaminhar o progresso e o desenvolvimento de nossas riquezas na direção do interior com a transferência da capital federal para Brasília, no planalto central do país, consolidando a unidade nacional. 

(Havia os que criticavam JK. Caluniavam o Presidente com os mesmos argumentos usados – ontem e ainda hoje - contra alguns governantes brasileiros, em especial contra os nossos maiores estadistas devotados a tirar o Brasil do atraso, fortalecer a soberania nacional, melhorar as condições de vida dos trabalhadores pobres. 

Rugia a oposição, martelando sem provas através da mídia oligarca, reacionária e golpista de então, que Juscelino era corrupto... 
...que seu governo era aliado dos comunistas... que ele pretendia fazer do Brasil uma União Soviética...   

...que Brasília era um desastre, um desperdício, uma capital condenada a se transformar em breve numa cidade fantasma...  
... que JK construía para ele um edifício triplex  com dinheiro público.

O tosco filme de sempre. Cantilena costumeira e tacanha de tradicionais adversários dos avanços de uma democracia social no país. 
Calúnias reacionárias que coube à história desmentir.)

O que aconteceu quatro anos depois – violenta e dolorosa reação de mentes opressoras inimigas do povo trabalhador brasileiro e da soberania nacional em nosso desenvolvimento histórico – é conversa para outra ocasião. Deixa lá.

Fiquemos no princípio de 1960 - tempo abençoado na história do país e não menos na construção de minha adolescência, gosto por ler, prazer de escrever, desejo de ser escritor.

Agora no terceiro ano do curso ginasial (hoje sétima série, no Fundamental II), aluno da mesma professora de Português – Dona Laerce Abreu – em sala de aula passamos todo o mês de março às voltas com textos – poemas, contos, letras de músicas e fragmentos de romances – expressivos da diversidade nacional.

Líamos e discutíamos, às vezes parodiávamos esses textos dos mais variados autores brasileiros de todas as regiões do país. 
Literatura instigante selecionada pela professora interessada em nos mostrar o feitio múltiplo e uno da brasilidade.

Comparamos seus enredos, personagens, cenários, modos de vida, vocabulários peculiares, biografias de seus escritores. 
Pesquisamos as características do país presentes em suas obras. Através desses textos percorremos o Brasil durante todo o março até abril quando alcançamos Brasília no mês da festa de inauguração da nova capital federal.

Criamos dez painéis, expostos nos corredores do ginásio, com recortes de artigos e reportagens publicados em jornais e revistas, fotos e desenhos das maquetes dos prédios da nova cidade em construção.  
Cinco desses painéis traziam textos escritos por cada um de nós - os alunos da terceira série ginasial. Cartas e bilhetes endereçados a JK, uns elogiando, outros criticando a mudança da capital. Também continham crônicas e versos dedicados a Brasília. 

Não perdi tempo. Entusiasmado escrevi longo poema em homenagem à nova capital, um punhado de versos eloqüentes à moda de Castro Alves, versos para declamar.
Principiei com a descrição da selva a ser desbravada, sua fauna, sua flora, mais os novos edifícios construídos, floresta nova em clareira do planalto central, o Catetinho, a catedral, o Congresso Nacional, a Praça dos Três Poderes, o Palácio do Governo e o Palácio da Alvorada, residência presidencial. Mais o Eixo Monumental associando a cidade de ponta a ponta. 

Encerrei o poema em apoteose proclamada, homenagem a Juscelino e ao povo Candango, conforme eram chamados os operários que trabalharam noite e dia durante três anos para ter Brasília pronta e inaugurada em 21 de abril de 1960, dia de Tiradentes, véspera do aniversário da invasão do Brasil pelos portugueses de Cabral.

Poema laudatório, um tanto exagerado, mas que agradou bastante quando anexado num dos painéis expostos nos corredores do ginásio. 
Poema também declamado por mim na praça central de Mimoso do Sul diante da cidade reunida em festa cívica solidária no dia da inauguração de Brasília. 
Versos hoje perdidos jamais encontrados em meio a meus manuscritos de antigamente, salvas não mais do que suas estrofes finais:

Quem foi que teve a coragem,
Que teve o brio, a ousadia
De Brasília construir?

Presidente Juscelino
Kubitschek de Oliveira,
Nosso maior homem vivo
Que em pessoa é a bandeira,
A bandeira do Brasil!

Que se juntem os poetas
E que se componha um hino,
Um samba, uma valsa, um tango
Que comece deste modo:
Obrigado, Juscelino!
Viva o povo Candango! 

Na ocasião, papai, lendo o poema antes de divulgá-lo, estranhou a presença de um “tango” na homenagem.
- Valsa até entendo porquê. Consta que o Presidente gosta mesmo de dançar valsa. Mas, tango, por que tango? – perguntou, intrigado.
- É só pra rimar com Candango! – expliquei, sem mais ter com que me justificar.

Recentemente livrei-me desses versos então transferidos para personagem tagarela em conto de meu livro “O Lobisomem da Paulista” publicado pela Editora Peirópolis.
Lá ficou melhor.  


Com fraterno abraço,
José Arrabal 



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