A VEZ DO VELOCÍPEDE
Às vezes quero escrever, tenho em mente o que desejo
escrever, a continuidade do enredo de uma história, entretanto algo me dificulta
levar adiante o texto a ser escrito. Nesse estado de impedimento, qualquer
insistência ao contrário será vã.
A priori não sei como superar um bloqueio que
ocasionalmente freia meu trabalho de escritor. Tenho percebido que, sem muita
demora, um detalhe surpreendente (um fato repentino ou uma situação inesperada)
suspende o maldito impasse, quando então retomo a elaboração narrativa.
Já vivi as mais diversas situações do tipo sem
ter previamente o auxílio de um padrão racional ou de um modelo estabelecido que
me livre de bloqueios. São múltiplos os exemplos de tais impedimentos involuntários
que já aconteceram comigo ao escrever.
Certa ocasião, bastante animado, escrevia uma
novela narrando a história de Deméter, a deusa grega do Olimpo que, em Roma,
foi Ceres, livro este posteriormente publicado pela Editora FTD.
Eis que no percurso de criação da obra cheguei à
passagem em que Deméter visita Zeus para lhe apresentar o filho Pluto gerado e
nascido de uma rebelde paixão da deusa por certo mortal.
Conhecia a trama mitológica, seus antecedentes
e o que ocorreu nesse encontro olímpico. Algo, porém, me impedia de prosseguir
escrevendo esse capítulo do livro. No caso, nada satisfazia. Escrevia e
deletava, gastando horas vãs e inúteis, sem avançar o enredo. Por fim, desisti.
Optei por sair de casa, andar um pouco, ir à
padaria do bairro em que morava, tomar um café, relaxar. Imaginei que isso traria
renovado ímpeto a meu ânimo para dar continuidade ao texto. Armei-me com papel
e caneta, na esperança de superar o bloqueio enquanto caminhava.
Pois bem... nem mesmo precisei sair. Ao descer
a escada que levava do escritório à sala de casa e à porta para a rua,
surpreendentemente sentei num de seus degraus e ali mesmo, nessa escada, libertei-me
do bloqueio. Passei a escrever compulsivamente.
De imediato narrei boa parte do encontro entre
a deusa, seu filho Pluto e Zeus, o que escrevi à mão usando todo o papel que trazia
comigo.
Sem ter mais onde escrever, levantei do degrau em
que estava sentado, voltei ao escritório, lá peguei outras folhas de papel e
rapidinho retornei à escada.
Sentei no mesmo degrau de antes e prossegui
escrevendo até o término do referido capítulo da novela, quando então corri à
máquina para datilografar o que escrevera à mão.
Certamente desconheço porque necessitei daquele
degrau da escada de casa para desatar a palavra, retomar a continuidade da
biografia de Demeter. Intrigante solução que não me serviu de exemplo ou modelo
para ocasiões futuras quando novos bloqueios dificultaram o andamento de minhas
outras histórias.
Sei de muitos relatos similares e não menos
curiosos já acontecidos com os mais diversos escritores na suspensão de seus
bloqueios e não ignoro que são variados os procedimentos de contistas,
romancistas e poetas para principiar a escrever.
De exemplo, existe o caso de um famoso escritor
brasileiro que só conseguia criar seus textos após sentar-se num velho
velocípede de infância, pedalar e circular por algum tempo em torno da mesa de
trabalho.
Daí ia à máquina de escrever e prosseguia,
criava passo a passo o seu romance de ocasião, mobilizado e aproveitando o
precioso tempo graças ao vento das lembranças que muito provavelmente lhe concediam
as pedaladas em seu antigo velocípede.
Conheço igualmente o depoimento de um de nossos
grandes poetas, onde ele confessa ter conseguido terminar um de seus mais intensos
poemas apenas após um tombo, quando se machucou e sangrou. Desse tombo e desse
sangue alcançou imediatamente os versos finais da bela poesia que escrevia.
Outro romancista, não menos prestigiado,
contou-me que em certa época de sua vida só escrevia se estivesse completamente
nu.
São situações do processo de criação, o que
provavelmente há de acontecer também com músicos, desenhistas, pintores,
escultores, atores e demais artistas ao criar.
Creio que sim, sem bem saber por que assim
acontece, ciente de que não são apenas esses os infindáveis mistérios do ato de
criar.
Fraterno
abraço,
J.A.
3 comentários
Além do belo texto em confidências, adorei a vinheta. Gostaria que, ainda na linha deste tema, contasse sobre o processo de criação do Da Vinci.
ResponderExcluirGostei do facilidade de sons que o texto proporcionou, porém, o que me fez escrever, e de alguma forma incorre na mesma questão, é a continuidade dos meus textos. Consigo descobrir um temo e dizer porque quero escrever sobre, e para por ai. Não tenho lampejos de continuidade. Logo a seguir ou quando dou um tempo para tentar continuar, uma nova história me assalta. Gostaria de uma dica de como não descarrilhar do trilho. É isso.
ResponderExcluirGostei do facilidade de sons que o texto proporcionou, porém, o que me fez escrever, e de alguma forma incorre na mesma questão, é a continuidade dos meus textos. Consigo descobrir um temo e dizer porque quero escrever sobre, e para por ai. Não tenho lampejos de continuidade. Logo a seguir ou quando dou um tempo para tentar continuar, uma nova história me assalta. Gostaria de uma dica de como não descarrilhar do trilho. É isso.
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