O NARRADOR - Parte II
- era uma vez uma
lagoa de cristal transparente, ele por ela olhando a lagoa de cristal, os
peixes nela nadando e tudo se vendo nela, lá dentro no adentro dela e tudo
quanto é peixinho de toda a cor bonitinho nadando entre os cristais da lagoa de
cristal, pessoas se aproximando e vendo o raio de sol na lagoa penetrando para
além da superfície do cristal bem pelo adentro da lagoa até lá embaixo,
raio de sol
travessando vagarzinho entre os traços dos cristais dessa lagoa, cidade de
gente simples, o agente do correio sua pança sempre sonsa distribuindo postais
de lá para cá as pessoas todas elas se escrevendo e ele de pança sonsa pondo em
cartas cada selo tudo selo colorido e na mulher desse agente cada seio tudo seio
mais parecido recheio de pêssego adocicado, ele sempre perfumado no perfume
desses pêssegos,
a trança daquela moça
que morava atrás da escola e o chefe da estação sendo um gordo viajante sempre
tocando viola, sempre viola na mão e o homem da farmácia o seu bigode dourado
cofiado cofiado mas muito desconfiado, examinando os doentes, diziam, porque
viviam no jardim da casa dele duas dúzias de duendes cozinhando os remédios da
magia da farmácia e seu bigode dourado, o velho advogado careca nobre safado
falando por cutuvelos solucionando questões tomando chá e conversa por todos os
seus botões de sua camisa branca sempre que sempre vestia
e o médico local
sempre plantando flores umas flores engraçadas, cada uma, cada nome, sempre uma
gargalhada, ele tinha dentadura um cavanhaque lustrado um cabelo penteado com
pente tão bem talhado de um galho de alfazema, a enfermeira local uma loura tão
vivida que só curava ferida, ferida de coração, mel no seu algodão,
a senhora do puteiro
sendo comadre do padre que nunca rezava missa e só vivia tomando por seu cálice
furado licor de romã maduro trago típico local, as senhoras da cidade um
punhado de doceiras doces de toda maneira nossa que agitação um quindim na sua
mão: imagine que faziam com sabor inigualável um petisco apreciado por toda a
população a cocada de maçã:
e os velhos da
cidade, essa cidade sem não da lagoa de cristal, eram velhos tão supimpas todos
engravatados contando histórias vividas de um passado já lá longe as histórias
que contavam logo histórias esquecidas ficando delas lembranças de tremenda
confusão tudo de ponta-cabeça com o presente na mão, ninguém ficando sozinho
naquela cidade não, cidade tão diferente doutra cidade por perto que diziam
chamar Hum, só Cidade do Hum,
e na praça da cidade
a lagoa de cristal os peixinhos da cidade furtacor de caracol e o olhar daquela
gente sempre indo até o fundo da lagoa colorida, olhar de gente pra gente,
olhar com gosto de vida e o sol jogando seus raios pelos cristais da lagoa, em
cada cristal passando um arco-íris formando, arco-íris de mil cores miraflores
no arco-íris, cada peixinho passando por cada cor se tintando, todo o mundo
iluminando,
o olhar dessa lagoa,
lagoa de todo mundo na lagoa de cristal, à noite todos nas suas, lua por lua,
três luas nessa cidade encantada, seu povo uma molecada, molecagem vadiada,
ninguém sabia de nada, na cidade cavalgada uma árvore de fogo vermelho feito
dourado,
o olho do corpo
inteiro nessa cidade estrada e um sol todo raiado na lagoa penetrado por tudo
mostrando as faces por tudo mostrando os peitos por tudo mostrando os braços
por tudo mostrando as mãos pica bunda pernas pés, as cavernas das mulheres
sempre abertas pra tocar por elas se viajar...
...e os homens dançando
livres e as três luas da cidade nas ruas intimidades, três luas iluminando duas
luas coloridas, além das três luas, duas, pela vida das pessoas pelas ruas da
cidade onde o código penal, lendando o que lendava, lendava por sua lenda falando com precisão que
ninguém além dali podia mesmo saber da cidade procurada dos duendes e a fornada
de remédios sem doenças, a cocada de maçã,
sendo preciso
entender que ninguém além da terra podia mesmo sentir, sentir tornado o saber
da lagoa de cristal de seus peixes coloridos, mas a notícia correndo
atravessando as paredes por cumprir as profecias doutras terras tão limites
cavalgando por estradas em matagais indo além cortando longas planícies fazendo
desfiladeiros, a notícia indo até mesmo até que indo à pé ao povo do deus
divino zona do sacrificado gente do desprazer da lagoa de cristal
e de repente todo
mundo e toda gente começando a juntar gente, chegando outros chegados um
escarcéu carregado, o povo do deus divino, um olho em cada dedo, cada dedo dó
de dado, na barafunda das culpas gente querendo ter a lagoa de cristal na lagoa
mergulhar e nela se estirar por lençóis de piquiniqui regado com carne morta a
carne do deus divino mel em lata pão prensado peixe seco sangue triste, em tudo
o bem e o mal trazendo em tudo o pecado em tudo só vendo dor e culpa e tal e
tal,
essa turma da
tristeza na lagoa de cristal sujando suas entranhas, estranha gente esse povo
deixando lá na lagoa a sujeira de suas almas, a alma deles nos corpos, um
pessoal enrolado um bom-dia ensimesmado que não come nunca a fruta deixando ela
apodrecer pra depois então comer,
essa gente do pecado
suja a lagoa de dor papel de seda manchado um punhado de cadernos toda a forma
de saber todo o modo de se ter por se ser encarcerado, um punhado de mesuras
por tudo aquilo querer somente o seu não querer, no ser não sentindo ser, como
escrituras caladas que nunca mostram o que sentem só querendo não querer o sim
tomado por não sempre dito por alguém:
o deus divino sereno
trazendo a culpa na mão, fazendo da cruz a vida com virgens na madrugada
policiando a orgia, orgia sem alegria subindo em glória a escada por anjos toda
castrada e o povo todo na praça o povo do deus divino dessa Cidade do Hum, no
não o seu coração, pra lagoa de cristal seu quinhão só de tristezas, a lagoa um
telhado suja por se lavar nela todo o prazer agora feito pecado,
ela antes colorida
lagoa pra toda vida que vem de água escorrida do fundo de uma caverna catatau
de cada qual cata tônico e tal do fundo dessa caverna mais que nunca de cristal
e o povo do deus divino suja a lagoa de bens suja a lagoa com o mal e o povo do
lugarejo limpa as bordas lustra o centro do cristal e o povo do deus divino
cega a lagoa com o mal cega a lagoa com bens sujando tudo outra vez,
o cristal já esburacado
ferido todo sangrado o sol deixando o seu raio já descer sacrificado
sacrificando os peixinhos num azul acinzentado, lá no fundo da lagoa um lodo
bravo nascendo ela nem mais se valendo duma beleza vermelha em fim de tarde
possível, nessa lagoa assustada em si o acontecido vivido vivenciado, o povo da
cidadela um povo então já irado com toda aquela imundice com todo aquele
bendisse da limpeza se afastando da lagoa de cristal,
tensão pro povo
passando, dela lagoa assustada por si agora grimpada, percebendo o percebido a
transparência perdendo cada dia e cada dia e o povo não se entendendo o povo
representando o povo não mais se lendo e a lagoa trincando com trincado o seu
trinado, rachando os seus mil cristais, mais opaca ela ficando, o seu dentro não
deixando ser tocado por alguém,
crispa as frestas dos
cristais, uma rede assim formada, por dentro iluminada, no rosto toda trincada,
a lagoa mascarada no rosto toda trincada, a lagoa mascarada do povo do deus
divino assim lagoa guardada, o raio de sol secando, no trincando dos trincados
certas pessoas chegando no lugarejo por tudo por prazer ela limpando
e ela com mais
pecados por tudo feito pecado penetrando nos trincados do cristal já sem
trinado e nela já se guardando essa lagoa grimpada o olhar lá da lagoa um olhar
que é mais de nada e desde então só chovendo dos olhos dessa lagoa chuva grossa
chuva cega que tanto se vê chover e o povo do deus divino satisfeito pra valer
com o trincado da lagoa por pecado o de ser em si e por si se ver
e toda a
tranqüilidade e toda simplicidade em toda festa do mundo sendo preciso viver
pra lagoa destrincar, nessa cidade lagoa desta história só restando a história,
mesma coisa, tudo uma trança de coisas por tranças sacrificadas, o povo não se
importando, a lagoa mais sujando, a lagoa mais trincando sua vidraça por
culpas, já na linguagem de tudo o dito, dito cifrado, no dito, dito não dito,
um dito nunca falado
e ele no cavalgar
desta história da lagoa de lá e deste lugar e a praça toda emproada de povo
empovoada e todos dele esperando um pedido de socorro para levá-lo ao mercado e
ele no cavalgar se lembrando da lagoa com sua face trincada ainda que
gargalhada pro povo todo a pergunta vocês gostam da história que a história
determinou:?
Com fraterno abraço,
J. A.
1 comentários
Adorei o texto, a composição formal, o estilo, a fluência e encadenamento das palavras, a possibilidade de visualização de diferentes visões ao leitor, compondo um retrato multifacetado. Parabéns!
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