O SOM DAS PALAVRAS
Suas sílabas são notas musicais que se associam e fazem
da palavra, na melhor literatura em prosa ou poesia, uma espécie de motivo
sonoro para a melodia da frase.
Nos templos, os livros sagrados e as orações divinas
são muitas vezes lidos para os fiéis, por seus sacerdotes, como se fossem
canções, num improvisado acompanhamento da sonoridade verbal...
... e os melhores textos literários costumam nos
fornecer prazeres similares ao de ouvir uma sonata, um rondó, uma fuga, algo
assim, até mesmo uma sinfonia.
Recentemente a percepção dessa composição musical
expressa através das palavras invadiu-me os sentidos ao ler os quatro volumes de
“José e Seus Irmãos”, de Thomas Mann, em tradução aprimorada para o português,
numa edição dos anos 40 do século passado, publicação da Editora Globo, Porto
Alegre, Rio Grande do Sul.
Deveras durante essa minha leitura convivi com o
vasto romance como se escutasse inteligente sinfonia, devido ao encadeamento
das palavras e frases reunidas numa sutil cumplicidade musical.
Na Universidade de São Paulo, em meados de 2014,
ouvi semelhante observação de uma eminente tradutora do escritor Nicolai Gogol:
-“Em Gogol, admiro muitíssimo a musicalidade
presente nos parágrafos de sua narrativa, o que é praticamente inviável de
traduzir como tal para nosso idioma. Seu romance ‘Almas Mortas’, em russo, é
tal qual uma sinfonia - adiantou a tradutora. - Fiz o que pude para recriar o
texto com sua sonoridade peculiar. Talvez um músico fizesse melhor do que eu.”
Estou convencido de que tudo é som e associação de
sons verbais na melhor literatura, embora por costume os leitores se mostrem
mais atentos à significação do sentido de dado enredo ou poema.
Certa ocasião solicitei a um aluno coreano que
ensaiasse em casa e lesse para nós, em sala de aula, com a mais precisa
inflexão e sem qualquer referência anterior ou tradução, um belo conto da
literatura de seu país de origem.
Foi o que ele fez e sua leitura em voz alta (apesar
de não compreendermos o conteúdo da história lida) cativou a todos nós graças à
musicalidade da narrativa.
Creio que os melhores escritores realizam seus
romances, contos e poemas tal qual um excelente músico toca de ouvido seu
instrumento musical, não menos entremeando improvisos surpreendentes, num procedimento
que acentua a presença da função poética do texto literário.
Em livraria de Lisboa, conversei com uma jovem
portuguesa que lia “Grande Sertão:Veredas”, de Guimarães Rosa.
Perguntei se era difícil para ela a leitura do
romance.
Adiantou-me que estudava teoria musical na
universidade e que seu interesse pelo livro residia em sua contínua associação
sonora vocabular, efeito que tornava a obra uma espécie de canção do seu agrado.
Era esse o intuito de sua pesquisa ao ler “Grande
Sertão:Veredas”.
Concordei com a resposta deveras próxima de minha
percepção do romance roseano.
Encanta-me quando uma sílaba de um substantivo
estabelece no texto delicada cumplicidade com a sílaba de alguma palavra
adiante, talvez um verbo ou adjetivo na frase.
Essa bem sucedida sintonia sonora dos vocábulos é
algo mais valioso do que o simples uso de rimas, aliterações, onomatopéias ou
jogos com palavras homófonas, embora estes também sejam úteis recursos quando
bem usados no texto literário.
Em especial, refiro-me a uma musicalidade verbal
mais sutil, através de uma associação fonêmica em ritmo equilibrado com o
sentido das palavras.
Não em vão vale recordar que o poeta Manoel de
Barros confessa ter aprendido “a amar o equilíbrio musical das frases”
ao ler os sermões do Padre Antônio Viera.
De fato a musicalidade das palavras, em conformidade
com seus conceitos, é o que reafirma, no corpo da função poética, sua necessária
elegância ou mesmo precisa aspereza.
Trata-se de uma exigente harmonia entre o som e o
sentido dos vocábulos, capaz de gerar com vitalidade a construção da estrutura de
uma narrativa ou de um poema.
Eis o que fornece belo estilo à prosa ou à poesia...
... e isto é escrever bem.
Lance nada fácil para um escritor, esse ajustado procedimento
na consolidação da presença da arte no texto literário.
Com fraterno abraço,
J. A.
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