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O SOM DAS PALAVRAS

quarta-feira, setembro 16, 2015 José Arrabal 0 Comments Category :


Toda palavra é um conjunto de sons.
Suas sílabas são notas musicais que se associam e fazem da palavra, na melhor literatura em prosa ou poesia, uma espécie de motivo sonoro para a melodia da frase.

Nos templos, os livros sagrados e as orações divinas são muitas vezes lidos para os fiéis, por seus sacerdotes, como se fossem canções, num improvisado acompanhamento da sonoridade verbal...

... e os melhores textos literários costumam nos fornecer prazeres similares ao de ouvir uma sonata, um rondó, uma fuga, algo assim, até mesmo  uma sinfonia.

Recentemente a percepção dessa composição musical expressa através das palavras invadiu-me os sentidos ao ler os quatro volumes de “José e Seus Irmãos”, de Thomas Mann, em tradução aprimorada para o português, numa edição dos anos 40 do século passado, publicação da Editora Globo, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Deveras durante essa minha leitura convivi com o vasto romance como se escutasse inteligente sinfonia, devido ao encadeamento das palavras e frases reunidas numa sutil cumplicidade musical. 

Na Universidade de São Paulo, em meados de 2014, ouvi semelhante observação de uma eminente tradutora do escritor Nicolai Gogol:

-“Em Gogol, admiro muitíssimo a musicalidade presente nos parágrafos de sua narrativa, o que é praticamente inviável de traduzir como tal para nosso idioma. Seu romance ‘Almas Mortas’, em russo, é tal qual uma sinfonia - adiantou a tradutora. - Fiz o que pude para recriar o texto com sua sonoridade peculiar. Talvez um músico fizesse melhor do que eu.”

Estou convencido de que tudo é som e associação de sons verbais na melhor literatura, embora por costume os leitores se mostrem mais atentos à significação do sentido de dado enredo ou poema.

Certa ocasião solicitei a um aluno coreano que ensaiasse em casa e lesse para nós, em sala de aula, com a mais precisa inflexão e sem qualquer referência anterior ou tradução, um belo conto da literatura de seu país de origem.

Foi o que ele fez e sua leitura em voz alta (apesar de não compreendermos o conteúdo da história lida) cativou a todos nós graças à musicalidade da narrativa.

Creio que os melhores escritores realizam seus romances, contos e poemas tal qual um excelente músico toca de ouvido seu instrumento musical, não menos entremeando improvisos surpreendentes, num procedimento que acentua a presença da função poética do texto literário.

Em livraria de Lisboa, conversei com uma jovem portuguesa que lia “Grande Sertão:Veredas”, de Guimarães Rosa.

Perguntei se era difícil para ela a leitura do romance.
Adiantou-me que estudava teoria musical na universidade e que seu interesse pelo livro residia em sua contínua associação sonora vocabular, efeito que tornava a obra uma espécie de canção do seu agrado.

Era esse o intuito de sua pesquisa ao ler “Grande Sertão:Veredas”.
Concordei com a resposta deveras próxima de minha percepção do romance roseano.

Encanta-me quando uma sílaba de um substantivo estabelece no texto delicada cumplicidade com a sílaba de alguma palavra adiante, talvez um verbo ou adjetivo na frase.

Essa bem sucedida sintonia sonora dos vocábulos é algo mais valioso do que o simples uso de rimas, aliterações, onomatopéias ou jogos com palavras homófonas, embora estes também sejam úteis recursos quando bem usados no texto literário.

Em especial, refiro-me a uma musicalidade verbal mais sutil, através de uma associação fonêmica em ritmo equilibrado com o sentido das palavras.

Não em vão vale recordar que o poeta Manoel de Barros confessa ter aprendido “a amar o equilíbrio musical das frases” ao ler os sermões do Padre Antônio Viera.

De fato a musicalidade das palavras, em conformidade com seus conceitos, é o que reafirma, no corpo da função poética, sua necessária elegância ou mesmo precisa aspereza.   

Trata-se de uma exigente harmonia entre o som e o sentido dos vocábulos, capaz de gerar com vitalidade a construção da estrutura de uma narrativa ou de um poema.

Eis o que fornece belo estilo à prosa ou à poesia...
... e isto é escrever bem.
Lance nada fácil para um escritor, esse ajustado procedimento na consolidação da presença da arte no texto literário.


Com fraterno abraço,
J. A.

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