AS PALAVRAS, A LIBERDADE E A VIDA
No interior do Brasil, comadres costumam dar de
mamar aos filhos umas das outras, situação que me favoreceu quando bebê em
Mimoso do Sul, no estado do Espírito Santo, onde nasci na segunda metade dos
anos 40 do século passado.
Minha mãe não tinha em seus seios tanto leite para
mim. Por conta disto generosamente concedeu-me a fartura leiteira dos volumosos
seios de Dona Malake, uma imigrante árabe que no decorrer de dois anos
alimentou minha infância com precioso prazer.
(Numa feliz coincidência do destino, seu nome árabe
traduzido em Português significa Liberdade. É o que sempre soube e não é pouco,
sendo bastante honroso ter sido, desde a remota infância, amamentado pela
Liberdade, o que decerto marca meu permanente caráter rebelde contra qualquer
sentido opressivo das contingências sociais.)
Comadre de minha mãe, madrinha de seu filho meu
contemporâneo, essa abençoada senhora, sempre alegre e carinhosa, tornou-se
minha mãe de leite.
Consta que a todo instante, com evidente bom motivo,
eu esperneava e chorava querendo os seios de Dona Malake. Desejo logo
satisfeito, é responsável por boas lembranças da fase oral na formação de
minhas emoções.
Acredito que essa remota satisfação da oralidade
contribuiu decisivamente para torna-me uma criança extremamente falante, um
moleque apaixonado pelo poder das palavras, alguém com a palavra desatada, orador
e declamador de poemas nas festas escolares, leitor e contador de casos, inventor
de histórias às voltas com o sonho de ser escritor.
De fato creio que, nos fartos seios de Dona Malake –
também, quem sabe, matriz arqueológica de meus permanentes anseios por
Liberdade individual e social – encontrei as sementes de minha afeição pela
Literatura.
Aos dois anos de idade já sabia repetir os nomes das
letras do alfabeto, desde o A até o Z, inclusive sem esquecer de pronunciar com
clareza os complicados W e Y. Graça infantil com que conquistava aplausos de parentes
e amigos da família.
Não demorei para reconhecer essas letras que sabia
de cor.
Logo passei a recitar pequenos poemas e a cantar com
desenvoltura as marchinhas dos carnavais de época, o que me afeiçoou à magia das
rimas verbais. Era muito divertido descobrir palavras que rimavam.
Aprender a ler pouco me custou, em especial graças à
aguda sensibilidade didática de minha professora na escola primária, Dona Zoe,
mestra cujo nome grego significa Vida, em Português.
Sinto-me sempre grato à feliz fase oral de minha existência,
felicidade cultivada em mim por Dona Malake, a senhora Liberdade, com as conseqüências
que trouxe para meu destino. Não menos grato sou a Dona Zoe, a senhora Vida, na
progressiva continuidade de minha alfabetização.
Alimentado desde a infância pela Liberdade e educado
pela bênção da Vida, ambas são fontes arqueológicas de minha afetiva aproximação
com a língua, a linguagem, a prosa e a poesia.
Não menos contribuiu
para essa afeição um inesquecível brinquedo ganho nos primeiros meses de aula de
meu curso primário em Mimoso do Sul. Valiosa caixa com dezenas de cubinhos de
madeira, cada um deles trazendo diferentes vogais ou consoantes gravadas em
suas faces para com elas compor palavras e frases.
Foi uma alegria sem fim ter esse brinquedo junto de
mim.
Pouco mais tarde, a ele se somou ilustrado
Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro (publicação da Editora Lello, de
Portugal), presente dado por papai quando eu já sabia ler com ágil fluência.
Na ocasião sugeriu que descobrisse na obra os mais
diversos significados e sinônimos das palavras para copiá-los com as letras
gravadas nos cubinhos de madeira do brinquedo.
Era sempre uma instigante descoberta armar e
encadear, com esses cubinhos de letras, os substantivos, os adjetivos e os
verbos encontrados no dicionário.
No decorrer dessa intimidade com as palavras, passei
a compor tramas e enredos de histórias. Hoje ainda preservo comigo alguns
desses cubinhos de madeira com letras impressas.
Já o dicionário da Lello permanece vivo em
prateleira de uma de minhas estantes de livros, junto de outras obras antigas,
preciosas relíquias que trago desde a infância e adolescência.
Sem alarde costumo visitar esse dicionário no intuito
de reencontrar bons percursos vividos.
Hábito que me faz bem.
Compensa a apressada brevidade da vida.
Com fraterno abraço,
J. A.
1 comentários
Grande Arrabal. Poético, sensível e sutil seu texto. E fraterno, tal qual o abraço que deixa no final. Abraços, também fraternos. Paulo Tannus.
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